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Recomendações duplas para os fiéis aos livros
Boa tarde, boa segunda!
A newsletter de hoje nasceu daquele sentimento que permanece em nós ao fim de uma leitura — o abalo da trama, a saudade dos personagens, o luto do universo criado. Como seguir em frente depois de uma imersão literária? Como digerir tudo aquilo que lemos? E pior, como escolher nossa próxima leitura?
Pois, para tornar essa transição de um livro para o outro mais fácil, para adiar a mudança mental que uma nova leitura traz, ou até para revisitar lugares literários que já nos trouxe muitas reflexões, é que escolhemos estas duplas de livros que compartilham do mesmo tema e conversam entre si. Uma ponte entre literaturas, que nos ajuda a viajar entre e além.
Se você já leu Amada, de Toni Morrison, leia A rua, de Ann Petry e O céu para os bastardos, de Lilia Guerra
Em Amada, Toni Morrison inspira-se em uma história real para construir uma narrativa complexa, brutal e lírica. Seguimos a história de Sethe, uma ex-escrava que, após fugir da fazenda em que era mantida cativa com os filhos, foi refugiar-se na casa da sogra. No caminho, ela dá à luz um bebê, a menina Denver, que vai acompanhá-la ao longo da história. A relação familiar, bem como os traumas do passado escravizado, transformarão a vida e o futuro de ambas de forma irreversível.
Amada segue uma estrutura não-linear, viaja do presente ao passado, alterna pontos de vista que sondam cada uma das facetas desta história sombria e complexa. Considerado um clássico contemporâneo, este livro faz um retrato ao mesmo tempo lírico e cruel da condição do negro no fim do século XIX nos Estados Unidos.
No entanto, não teríamos Amada se quarenta anos antes, Ann Petry não tivesse publicado A rua, o primeiro romance de uma autora negra a superar a marca de 1 milhão de exemplares vendidos nos Estados Unidos. No cânone da literatura afro-americana, contudo, a autora nem sempre foi devidamente lembrada, mas não mais! Mais de sete décadas depois de sua primeira edição no Brasil, o romance de Ann Petry recebeu nova tradução, de Cecília Floresta, e vem acompanhado do posfácio da escritora americana Tayari Jones em uma belíssima que saiu pela editora Carambaia.
A maior parte do enredo se desenvolve, efetivamente, em uma rua, a 116th Street, que tem papel-chave na vida da protagonista, Lutie Johnson, que tenta sobreviver com um filho de 8 anos no tumultuado bairro nova-iorquino do Harlem. Nas palavras de Tayari Jones, “a 116th Street é a resoluta antagonista e representa a intersecção entre racismo, sexismo, pobreza e fragilidade humana”.
Nesse caminho traçado por Ann Peltry e por Toni Morrison também caminha e desbrava a escritora brasileira Lilia Guerra, que acabou de lançar o livro O céu para os bastardos. A história é protagonizada por Sá Narinha, uma mulher negra e trabalhadora doméstica que vive no Fim-do-Mundo, uma espécie de Macondo periférica.
Sá Narinha nos encanta com a sua sensibilidade, simpatia e humanidade. É um romance sobre o sentido da emoção e da inteligência na realidade mais cotidiana. Num tom de crônica sobre a periferia, trazendo muito mais do que as questões graves que assolam esse espaço social, O céu para os bastardos também dá lugar para a delicadeza e o registro cômico. Assim como Peltry e Morrison escreveram sobre as batalhas enfrentadas por mulheres negras em seu tempo, Lilia Guerra constrói aqui um riquíssimo painel da vida brasileira.
Se você leu Só Garotos, de Patti Smith, você deveria ler Hervelino, de Mathieu Lindon.
Em Só Garotos, Patti Smith revive sua história ao lado do fotógrafo Robert Mapplethorpe, enquanto os dois tentavam ser artistas e transformar seus impulsos destrutivos em trabalhos criativos. Era o final dos anos 1960, e Patti teve de se virar como pôde: morou nas ruas de Manhattan, dividiu comida com um mendigo, trabalhou e dormiu em livrarias e até roubou os colegas de trabalho, enquanto conhecia boa parte dos aspirantes a artistas que partilhavam a atmosfera contestadora do famoso “verão do amor”. Foi então que conheceu o rapaz de cachos bastos que seria sua primeira grande paixão: o futuro fotógrafo Robert Mapplethorpe, para quem Patti prometeu escrever este livro, antes que ele morresse de aids, em 1989.
A mesma melancolia e leveza percorre as páginas de Heverlino, onde Mathieu Lindon recorda os anos que passou com Hervé Guibert — carinhosamente, Hervelino, na Itália, no final da década de 1980. Esses anos felizes são marcados pela recente descoberta de que Guibert era soropositivo, e viria a falecer em 1991. Hervelino, publicado exatos 30 anos após sua morte (tamanho o trabalho que o luto exposto nesta obra exigiu) é a homenagem de Lindon a seu amigo.
Ambas as biografias são homenagens tocantes e cheias de amor para os respectivos amigos de cada autor, que foram levados tão cedo e repentinamente pela epidemia da AIDS, entre as décadas de 1980 e 1990. Tanto Hervelino quanto Mapplethorpe estão presentes em cada linha dessas honestas odes ao amor.
Se você é fã das obras de Annie Ernaux, você deveria ler Retorno à Reims, de Didier Eribon.
Desde a publicação de seu primeiro livro, em 1974, a escrita de Annie Ernaux continuou a explorar não apenas sua própria experiência de vida, mas também a de sua geração, seus pais, mulheres e outros anônimos que se encontram no espaço público, os esquecidos. O corpo e a sexualidade, os relacionamentos íntimos, o tempo e a memória — assim como a questão abrangente de como escrever essas experiências de vida — são os temas que percorrem as obras de Ernaux. No trabalho de Ernaux, as experiências mais pessoais e íntimas — seja de luto, vergonha de classe, sexualidade nascente, paixão, aborto ilegal, doença ou percepção do tempo — são sempre entendidas como compartilhadas por outros e refletem o contexto social, político e cultural em que ocorrem.
Ao evocar o mundo operário de sua infância, reconstruindo sua ascensão social e sua vida intelectual a partir dos anos 1950, o filósofo e sociólogo francês Didier Eribon combina a cada parte desse relato íntimo e comovente elementos de uma reflexão sobre classes, sistema escolar, formação das identidades, sexualidade, política, democracia e a mudança do padrão de votos da classe operária.
Entrelaçando a reflexão sociológica e memória autobiográfica, Didier Eribon relata seu retorno, depois da morte de seu pai, a Reims, sua cidade natal, e seu defrontamento com seu ambiente de origem, com o qual havia praticamente rompido trinta anos antes. Desse reencontro, vem o ímpeto de mergulhar no passado e retraçar a história de sua família, à medida que se dá conta de que a ruptura não se deveu exclusivamente a sua homossexualidade ou à homofobia que pairava no ambiente doméstico, mas também à vergonha que ele sentia de sua origem social.
Os temas que percorrem as obras de Ernaux podem ser encontrados, de forma vívida e por vezes dolorosamente realista, nessa grande obra de Eribon.
E esta é a nossa newsletter de hoje. Temos outras recomendações duplas preparadas para as próximas semanas, aguardem!
Boas leituras!