Romances históricos brasileiros (e um guadalupeano)
A literatura que nos ajuda a entender a história
Antes do boom da autoficção, vivíamos na era dos romances históricos. Neles, a ficção digere os fatos históricos, tornam-os mais palpeáveis, pessoais e inclusivos. Aqui, reunimos grandes títulos de romances históricos brasileiros, que iluminam vozes antes silenciadas.
A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz
Cristina é a jovem romântica que vem de Portugal para casar-se com Tiago. Decepciona-se logo ao desembarcar do navio: seu prometido não a aguarda. E, para chegar a Lagoa Serena, a propriedade da família do noivo, precisa enfrentar dificuldades a fim de transpor a muralha da Serra do Mar, que separa o litoral da vila de São Paulo de Piratininga. Mas Cristina terá de lidar com muito mais do que as vicissitudes de uma terra selvagem: a indiferença de Tiago, que parece só querer bem às estrelas, e os hábitos tão distintos daqueles do Reino.
A paisagem e os costumes do tempo colonial são reconstituídos por Dinah Silveira de Queiroz — ela própria descendente do bandeirante Carlos Pedroso da Silveira —, com destaque para as enérgicas personagens femininas: afinal, eram as mulheres que administravam e defendiam a casa enquanto os homens partiam nas bandeiras.
“A escritora transpôs para seu romance um mundo inteiro de gente, de paixões e de sucessos violentos, dentro de um cenário igualmente copioso e dolorido: esse episódio da infância de um povo, turbulenta e sensacional, não é apenas um quadro, de limites curtos: é todo um grande painel — um painel de proporções portinarescas.” — Rachel de Queiroz, 1954
A família Medeiros, de Júlia Lopes de Almeida
Abolicionista, feminista e republicana já nas duas últimas décadas do século XIX, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) foi uma das escritoras mais ativas e mais lidas de seu tempo, mas, como muitas outras, passou por um processo de apagamento histórico que ainda não foi de todo reparado. O romance A família Medeiros, que em 2021 completa 130 anos, foi a obra que a tornou conhecida em seu tempo. Publicado primeiramente como folhetim na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 1891, tornou-se livro rapidamente graças a uma trama bem arquitetada que passa por uma história de amor e por mais de um mistério a ser desvendado. No entanto é também, do início ao fim, a narrativa do conflito entre jovens abolicionistas e escravistas, estes dispostos às piores crueldades para manter as coisas como estão.
O enredo começa com a chegada de Otávio Medeiros, depois de uma temporada de estudos de engenharia na Alemanha, à fazenda de seu pai, o comendador Medeiros, em Campinas (SP). Otávio vem para o Brasil com ideias avançadas contra a escravidão e a favor da modernização da agricultura, em oposição às convicções de seu pai. Na casa da fazenda Santa Genoveva mora agora uma prima, Eva, uma jovem altiva que não só nutre ideias abolicionistas como intervém contra os maus tratos aos escravos e contribui financeiramente para fundos de alforria. Em torno de Eva há um segredo que faz tremer o comendador.
Em A família Medeiros, que não por acaso a escritora terminou de escrever em 1888, ano da Lei Áurea, a convicção abolicionista vem lastreada por um painel do período de transição que transcorria. As fugas e rebeliões de escravos cada vez mais frequentes são acompanhadas do protagonismo das vozes antiescravagistas, surgem os primeiros imigrantes europeus e há prenúncios da automatização do campo: uma nova máquina agrícola é recebida com pompa e circunstância pelos personagens.
Um aspecto curioso da construção literária do romance, tributária da fonte do realismo francês, é a descrição das fazendas paulistas, seu funcionamento, os hábitos de seus moradores e o linguajar tanto dos escravos quanto dos senhores. Conforme a trama vai se adensando, os personagens centrais viajam pelas estradas, fazendas e vilas – além de, brevemente, pelas áreas centrais de Campinas – e a autora descreve os pequenos comércios e a fala caipira. Carioca, Júlia houve por bem criar notas de rodapé para explicar ao leitor os “paulistismos” que recolheu.
Romance de estreia de Ruth Guimarães (1920-2014), uma das primeiras escritoras negras a ganhar destaque na cena literária brasileira, Água funda foi lançado em 1946 - mesmo ano de Sagarana, de Guimarães Rosa. Mas enquanto o escritor mineiro se valia da plasticidade da fala sertaneja para inventar um léxico novo, entre o popular e o erudito, Ruth fez aqui uma original reconstituição etnográfica da linguagem caipira - que conheceu pessoalmente em sua infância passada no Vale do Paraíba e Sul de Minas -, aproximando-a das pesquisas de Mário de Andrade.
Entrelaçando diferentes tempos e personagens, inseridos no universo de uma comunidade rural na Serra da Mantiqueira, a autora construiu uma prosa ágil e fluida, permeada de ditos populares e causos marcados pela superstição e pelo fatalismo, que antecipa em certos aspectos o realismo mágico de Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. É o caso das histórias de Sinhá Carolina, dona da Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d'Água, e do casal Joca e Curiango, trabalhadores locais, num arco temporal que vai da época da escravidão até os anos 1930. Como afirma o narrador do livro: "A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada".
A vida mais invisível de Maria das Dores, de Armando Milioni
A vida mais invisível de Maria das Dores promove uma empregada doméstica a protagonista de uma saga familiar que atravessa quase um século de história brasileira. Maria das Dores viveu uma existência “invisível”, lutando de maneira obstinada para vencer na vida e criar seus três filhos.
Inspirado no livro de Martha Batalha, A vida invisível de Eurídice Gusmão, o escritor e professor Armando Milioni desloca a empregada Das Dores ao centro do palco, como personagem principal, para narrar quatro gerações de uma família pobre e trabalhadora, com suas dores e conquistas, tendo como pano de fundo o conturbado processo político brasileiro, desde a década de 1930 até os nossos dias.
Este romance conta a história de uma protagonista que tinha tudo para se tornar uma personagem esquecida, mas que na escrita aguda e envolvente do autor ganha centralidade e representação privilegiada.
Como diz Vanessa Ferrari na orelha do livro: “Maria das Dores sai do papel de coadjuvante e é alçada à de protagonista, revelando a sua dinâmica com a família sob o viés de quem é (muito) mais invisível do que a patroa. E, a despeito das forças sociais aniquiladoras, a personagem trava uma guerra diária pela própria dignidade e, em vários aspectos, é símbolo de uma nação vergonhosamente racista e desigual”.
Chuva e vento sobre Télumée Milagre, de Simone Schwarz-Bart
Télumée Lougandor é uma força da natureza, cheia de vida e dotada de uma alegria inata, sempre posta à prova por sua condição de mulher negra em Guadalupe. Em Chuva e vento sobre Télumée Milagre ela conta sua história e a de suas ancestrais. O romance é da escritora guadalupense Simone Schwarz-Bart, uma das vozes mais importantes da vigorosa literatura do Caribe, ao lado de nomes como o da romancista Maryse Condé e do pensador Frantz Fanon. Estge volume tem tradução de Monica Stahel, ensaio do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior e um posfácio de Vanessa Massoni da Rocha, especialista na obra da autora. Para Vieira Junior, o romance intensamente poético de Schwarz-Bart revela “uma cosmovisão de mundo profunda narrada com grande paixão”. Para ele, “a narrativa dessa linhagem de mulheres carrega a história de um continente inteiro”.
Télumée carrega consigo o conhecimento de um ambiente complexo e das armadilhas que lhe reservam a persistência da espoliação colonial e da lógica patriarcal. A sabedoria vem de uma linhagem feminina que remonta a sua bisavó. São quatro gerações de mulheres fortes, determinadas e forjadas por uma história de adversidades. “Há não muito tempo”, conta Télumée, “meus ancestrais foram escravos nesta ilha de vulcões, ciclones e mosquitos, de mentalidade perniciosa”. No entanto, ela não está disposta a remoer a “tristeza do mundo”.
Trabalhadora da terra em Fond Zombi, onde a família Lougandor tem sua porção de terra cercada por um canavial, Télumée é criada pela avó, Toussine, conhecida pelos homens da comunidade como Rainha Sem Nome. É de Toussine que vem a serenidade e a compreensão do mundo, às vezes dura: “Atrás de uma dor há outra dor, a miséria é uma onda sem fim, mas o cavalo não deve te conduzir, é você que deve conduzir o cavalo”.
Das agruras de suas relações muitas vezes brutais com os homens, Télumée encontra alívio na relação com a feiticeira man (madame) Cia, a madrinha que teria poderes extraordinários como se transformar em animais. A jovem negra se cerca de um panteísmo animista que dá o romance também o caráter de uma jornada espiritual.
Depois de humilhada ao procurar um trabalho doméstico na casa de brancos, Télumée encontra alívio nos tempos de clima favorável às plantações e no casamento com Élie, agricultor e filho de um ancião respeitado na comunidade. “Cada um parecia sopesar a vida, pôr na balança a miséria do negro, sua loucura e sua tristeza congênitas e depois o contentamento misterioso que às vezes dão ao olhar a natureza, o mar, as árvores, um homem feliz”, narra a protagonista. Mas sua situação, assim como o tempo de colheita, logo desaparece. É hora de retomar as rédeas do cavalo.
Após um acontecimento inesperado na família, uma adolescente tem sua rotina alterada da noite para o dia e deixa a vida de estudante num colégio de classe média em São Paulo para morar numa aldeia indígena do Alto Xingu. É lá que seu pai, um dedicado arqueólogo, procura pistas que comprovem a ocupação humana milenar da região. Mas para Ana não são tanto os milênios decorridos que interessam e sim o cotidiano da aldeia, com seus mistérios, seus ritos e seus códigos desconhecidos.
Articulando os tempos e os lugares da ação num contraponto entre São Paulo, Xingu e Paris, Terrapreta, romance de estreia de Rita Carelli, conduz o leitor com extrema fineza pelo universo dos afetos, das inteligências e das experiências sensíveis de uma comunidade indígena, no qual cada gesto, cada palavra, cada inquietação estão permeados por uma visão mítica do mundo. É nesse contexto, não isento de conflitos, que Ana entra em contato com seu próprio corpo, seus desejos e seus temores, e realiza — em parte sozinha, em parte com seus companheiros da aldeia e imersa na cosmovisão indígena — uma iniciação que acaba sendo uma poderosa jornada rumo ao amadurecimento.
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