Ricarda Huch, Natalia Ginzburg e Françoise Ega
Querido leitor, você já leu algum romance epistolar?
Caro amigo,
Espero que esta carta o encontre bem e em bom ânimo para esta semana que vai começar. Hoje, quero lhe contar sobre um tipo de poética que se assemelha aos nossos boletins semanais: a epístola, um poema dirigido a um amigo. É daí que vem o nome “romance epistolar”, nada mais nada menos que uma narrativa estruturada por meio de correspondências. E estou muito animada para te apresentar algumas das minhas obras epistolares favoritas.
Nestas páginas repletas de cartas, você vai mergulhar nas profundezas das relações humanas, em dilemas emocionais e sociais e em histórias de amor que transcendem o espaço e o tempo. Prepare-se para ser envolvido por tramas emocionantes, diálogos íntimos e personagens inesquecíveis.
Começando com…
O último verão, de Ricarda Huch
Escritora, historiadora e filósofa, Ricarda Huch (1864-1947) marcou época na Alemanha, mas ainda é pouco conhecida fora de seu país natal. Durante os anos do nazismo, fez parte do grupo de escritores que decidiu não se exilar e fazer oposição ao regime internamente.
Publicado em 1910, o livro foi criado em resposta a uma brincadeira em família, que desafiou Huch a escrever uma história de detetive. Ela encarou a aposta e criou um romance, em formato epistolar, que se passa na Rússia pré-revolucionária. Um tempo conturbado que contrasta com sua ambientação, uma casa de campo à qual a família do governador do Estado, Yegor Rasimkara, se recolhe em busca de tranquilidade e segurança. O governador tinha acabado de mandar fechar a Universidade de São Petersburgo para calar os protestos estudantis. Liu, um homem culto e observador, é chamado pela esposa de Yegor para protegê-lo em sua casa. No entanto, ele é secretamente um militante anarquista que planeja matá-lo.
Tudo isso é revelado logo no início. O romance se desenrola a partir daí em clima de tensão permanente, por meio de cartas trocadas entre Liu e um correligionário e entre os membros da família Rasimkara. Liu exerce sobre todos uma atração fora do comum, com “aqueles estranhos olhos cinzentos, que parecem penetrar em todos os corpos”, no dizer da matriarca. A família tem três filhos: Velia, um jovem piadista e despreocupado, e as irmãs Jessika e Katia, cheias de energia. Jessika se apaixona por Liu, e Katia fica enciumada, tornando-se a única voz crítica a Liu no núcleo familiar, o que não chega a abalar a situação confortável do forasteiro.
A cidade e a casa, de Natalia Ginzburg
Um conjunto de cartas narra a vida de um grupo de amigos na Itália da virada dos anos 1970 para os 1980. A história começa com a ida de um deles para os Estados Unidos, onde o plano de viver com o irmão professor em Princeton parece promissor, e termina no relato resignado que uma mulher, devastada pela passagem do tempo, faz de um antigo amante com "longo nariz" e mãos "sempre frias, mesmo quando fazia calor". Entre uma coisa e outra há mortes, desencontros, separações.
É verdade que A cidade e a casa pode ser lido a partir da dicotomia sugerida pelo próprio título: um romance sobre a dissolução familiar que reflete (ou impulsiona) uma dissolução maior, numa época politicamente turbulenta para a sociedade italiana. Mas a melancolia é só um ponto de partida: a energia da prosa de Natalia Ginzburg, autora capaz de extrair grande intensidade e beleza do cotidiano, é um farol que sempre aponta para um mundo mais humano e generoso. Nos variados tons das cartas, que acompanham o estado emocional de cada remetente, a singeleza das motivações tem o mesmo sentido ambíguo. Percebemos o que está oculto nas entrelinhas, os segredos, as pequenas trapaças. A empatia chega a quem lê de modo natural, irresistível. Um romance de rara beleza de uma autora fundamental.
O colibri, de Sandro Veronesi
Ambientado em Florença e em outras pequenas cidades italianas, O colibri é a história de quatro gerações da família Carrera. O ponto de vista é o de Marco, filho médico do casal Letizia e Probo, irmão de Irene e Giacomo, pai de Adele e avô de Miraijin.
Sandro Veronesi constrói, de modo não linear, a saga familiar dos Carrera. A história, contada por meio de diversos gêneros - cartas, documentos, e-mails, chamadas telefônicas, conversas de WhatsApp -, transita por memórias que vão dos anos 1970 aos dias atuais, aventurando-se até a audaciosa projeção de uma década.
Permeado por traições, incomunicabilidades, questões geracionais e de saúde mental, resiliência, superações, doenças, morte e amor, este é um romance emocionante sobre a necessidade de olhar para o futuro com esperança; um retrato da existência humana, das vicissitudes e dos caprichos que nos impulsionam e, em última instância, nos definem.
Cartas de Guerra, de Jacques Vaché
Qual estopim anuncia a aventura surrealista? Quem pergunta é atingido pelo disparo de Jacques Vaché, mirando ao acaso, como “o mais simples ato surrealista”, conforme André Breton, que o retratou como um espírito “de insubordinação total, em sigilo completo, (que) minava o mundo”.
Cartas de Guerra reúne as correspondências de Jacques Vaché enviadas aos seus amigos André Breton, Théodore Fraenkel e Louis Aragon enquanto atuava como tradutor e intérprete dos Aliados durante a Primeira Guerra Mundial. Será Breton que, em 1919, após a morte de Vaché, empreenderá a publicação das cartas do amigo. Elas apareceram primeiramente na revista “Littérature”, seguida da publicação em um único volume pelas edições Au sans pareil, em setembro desse mesmo ano, sob o título “Lettres de guerre”.
Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso
Livro responsável por abalar o meio literário brasileiro quando publicado pela primeira vez em 1959, Crônica da casa assassinada conta a história de uma família em decadência: cada geração se vê mais pobre que a anterior, dilapidando o patrimônio para sobreviver. Os Meneses, porém, continuam sendo respeitados na pequena comunidade mineira em que vivem. A Chácara, a grande casa que gera orgulho mas também aprisiona, é vista com reverência e desconfiança por todos que conhecem o clã.
Contudo, a chegada de Nina — jovem carioca que se muda após se casar com Valdo, o irmão do meio — vai abalar a relação difícil que se estabelece entre os irmãos. Demétrio, o mais velho, tem na esposa Ana uma arma sutil; Timóteo, o mais novo, se embrenha cada vez mais na própria decadência quando passa a viver trancado num quarto. "A matriarca da casa é a própria casa", diz Chico Felitti no prefácio desta edição. "Suas alamedas são veias que irrigam o coração que é a casa-grande."
Fantasmagórico, envolvente e extremamente brutal, Crônica da casa assassinada utiliza a pluralidade de vozes narrativas para explorar os limites do desejo e da submissão.
Cartas a uma negra, de Françoise Ega
Antilhana, Françoise Ega trabalhava em casas de família em Marselha, na França. Um de seus pequenos prazeres era ler a revista Paris Match, na qual deparou com um texto sobre Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de Despejo. Identificou-se prontamente. E passou a escrever “cartas” — jamais entregues — à autora brasileira. Cartas a uma negra, publicado postumamente, é um dos documentos literários mais significativos e tocantes sobre a exploração feminina e o racismo no século 20.
Caro Michele, de Natalia Ginzburg
Publicado em 1973, este romance apaixonante conta por meio de cartas a história de uma família em meio à Itália convulsionada do início dos anos 1970. Uma lição de literatura.
Apesar de ocupar o título do livro, Michele quase não aparece neste romance. O leitor conhece a vida do personagem através das cartas que recebe, principalmente de sua mãe, Adriana, da irmã, Angelica, e de amigos. Ambientado em Roma no início dos anos 1970 — entre uma tentativa de golpe de Estado e a vitória dos fascistas —, este livro faz com que a violência política se espalhe sorrateiramente pelo que se narra como um gás que sufoca e cega. A clareza reticente da escrita de Natalia Ginzburg, sua maneira implícita de contar uma história, encontra seu auge nesta obra magnética.
Cartas a Theo, de Vincent van Gogh
Dos primeiros tempos como aprendiz de marchand aos últimos dias de sua breve vida de pintor, Vincent van Gogh (1853-1890) manteve intensa correspondência com seu irmão Theo (1857-1891). São centenas de cartas, em que Van Gogh compartilha decisões e desesperanças; comenta as obras dos pintores que admira e os livros que lê; pede tubos de tinta e reclama da penúria material; mas sobretudo reflete, no calor da hora, sobre suas próprias telas, que por via da escrita se reapresentam aos nossos olhos com toda a vibração sensorial e espiritual que Van Gogh lhes imprimiu — e que a celebridade mercantil dos dias de hoje talvez lhes venha roubando. Traduzida diretamente dos originais em holandês e francês, esta seleção das Cartas a Theo oferece ao leitor brasileiro uma porta de entrada privilegiada para ingressar no universo do pintor — e para travar contato com um dos grandes textos que o século XIX nos legou.
Eu amo Dick, de Chris Kraus
Chris Kraus, uma cineasta independente e falida, apaixona-se por Dick, um respeitado crítico cultural, e tenta seduzi-lo com a ajuda do marido. Quando Dick se recusa a responder suas cartas, marido e mulher continuam a escrever um para o outro, imaginando uma aventura que leva Kraus para muito além de sua paixão. A obsessão amorosa, aqui, é o ponto de partida para uma investigação sobre a voz de uma autora e o lugar da mulher no mundo artístico e intelectual, ou, como diz Kraus, sobre “quem tem a chance de falar, e por quê”. O resultado é um livro ao mesmo tempo combativo e afetuoso, movido por uma liberdade narrativa que segue surpreendendo e influenciando seus leitores.
Escrevi pra você hoje, de Sabina Anzuategui
Luísa tem dezesseis anos e está no último ano da escola. Mora em Curitiba, é uma garota tímida e leitora voraz da Twist, uma controversa revista de música pop. Ela gosta especialmente dos textos da irreverente jornalista Erika Amazonas. A garota resolve tentar contato com a jornalista e passa a escrever cartas para um endereço que encontra na lista telefônica. Para sua surpresa (e grande contentamento), Erika responde.
Na troca de cartas, a relação entre as duas se constrói em torno da admiração, do interesse, da curiosidade e do desejo. Aos poucos, a relação vai se transformando. As cartas tornam-se mais lacônicas e ao mesmo tempo mais íntimas, diretas, sinceras. Essa conversa epistolar irá evoluir para encontros frente a frente ou continuará a ditar um relacionamento platônico?
Música, afeto, sonhos, humor, escrita, liberdade afetiva e sexual aparecem como as principais questões desse romance feito todo de cartas (e alguns textos sobre música e cultura pop). A história se passa no começo dos anos 1990, com o clima de rock e punk da época) e retrata a vida de uma adolescente e suas primeiras experiências profissionais, os shows alternativos e as baladas noturnas, os primeiros beijos, brigas e decepções, e a descoberta das relações homoafetivas.
E aí, o que achou? Estou ansiosa para ouvir suas impressões sobre essas obras e compartilhar nossas experiências literárias.
Com carinho,
Livraria Ponta de Lança.