Entre corpos, sombras e toques, a newsletter de hoje traz grandes obras da literatura erótica. Estes títulos quebram com as convenções sociais de que erotismo é algo simplesmente obsceno e pornográfico, e nos convidam a compreendê-los como um espelho para nós mesmos e para o outro, entre o suor e os suspiros.
Os livros abaixo abrangem o último século da literatura erótica e vão até a Grécia Antiga, tanto em antologias quanto em estudos teóricos. Mergulhemos, então, no erotismo, afinal, ninguém consegue escapar dos poderes de Eros.
Pois se ela foge, logo perseguirá;
e se presentes não aceita, em troca os dará;
e se não ama, logo amará,
mesmo que não queira.
(Hino a Afrodite, Safo, trad. Giuliana Ragusa)
Seleta erótica de Mário de Andrade, de Mário de Andrade (org. Eliane Robert Moraes)
A obra de Mário de Andrade é atravessada por uma profunda inquietação em torno do sexo. Pulsante e permanente, essa inquietação se traduz tanto na exploração do domínio erótico, de notável amplitude, quanto na incessante busca formal que o tema lhe impõe sem descanso. Na tentativa de reconhecer a silhueta de Eros nas tantas faces que o próprio escritor se atribuiu, sua produção literária se vale dos mais diversos recursos formais para dar conta de uma dimensão que parece continuamente escapar. Daí que o sexo venha a ser alçado ao patamar das suas grandes interrogações, onde se oferece na obscura qualidade de incógnita.
Foi a partir dessas constatações que Eliane Robert Moraes concebeu a Seleta erótica de Mário de Andrade, desdobrando-as em diversas perguntas pontuais, sem perder o foco na tópica da sexualidade.
Cinema Orly, de Luís Capucho

Numa despudorada autoficção, o escritor e compositor Luís Capucho mergulha o leitor na penumbra em Cinema Orly. É um relato confessional que se passa quase inteiramente na sala de exibição de filmes pornográficos do título. Corre a década de 1990, quando o local, no centro do Rio de Janeiro, havia se transformado em endereço de encontros homossexuais, enquanto na tela eram exibidos filmes de pornografia hetero. Entre homens e travestis, e uma única mulher que vendia balas e cigarros, o prazer é obtido furtivamente, sob a parca luz da projeção.
Pouco se sabe do personagem. Nem mesmo seu nome é informado. De passagem ficamos sabendo que ele tem 30 anos, trabalha em ofício desconhecido e mora com a mãe. No Orly ele conhece, ao longo do romance, dois namorados, sem que os encontros anônimos deixem de acontecer.
Primeiro romance de Capucho, o livro nasceu num período de convalescença. Em 1996, uma neurotoxoplasmose levou o então músico e professor de ensino médio de 34 anos ao coma. Na ocasião, Capucho descobriu-se HIV-positivo. O coma deixou consequências severas, ele não conseguia mais andar, falar, escrever, muito menos tocar violão. Com ajuda de fisioterapia, aos poucos foi recuperando os movimentos, mas ficou com “a voz do homem elefante”. Quando Cinema Orly foi escrito, as articulações das mãos ainda não estavam totalmente restabelecidas.
Já falamos deste livro na newsletter, enquanto ele ainda estava na pré-venda. Agora, finalmente, ele está disponível aqui na Ponta!
Do erotismo, de Robert Desnos
Jogo de luz e sombras, sugestão e provocação, corpos ascendidos, signos do amor, caminhos do desejo em busca da beleza convulsiva. O erotismo empreendeu sua trajetória poética e iluminou diferentes autores desde a antiguidade, passando pela literatura medieval, mas “pertence propriamente ao espírito moderno”, como destaca o surrealista Robert Desnos em Do erotismo: considerado em suas manifestações escritas e do ponto de vista do espírito moderno com tradução de Alexandre Barbosa de Souza, texto publicado em 1923.
Do erotismo foi publicado originalmente em 1923, ano que precedeu a publicação do Manifesto do surrealismo (1924), no qual André Breton aponta Desnos como aquele que possivelmente mais tenha se aproximado da verdade surrealista. Assim como Desnos, o erotismo é essencial para o surrealismo, sendo evocado e celebrado em diversos textos do movimento.
“Toda filosofia é incompleta, se a moral não contiver uma ‘ERÓTICA’”, destaca Desnos no prefácio da obra. “Que homem atento à poesia, inquieto pelos mistérios contingentes ou ocultos, não adora se afastar nesse retiro espiritual onde o amor é ao mesmo tempo puro e licencioso no absoluto?”.
Rosa mística – contos eróticos, de Marosa di Giorgio

Animais, folhas, flores, pedras preciosas, fluidos incontroláveis. O universo erótico de Marosa di Giorgio (1932-2004) é personalíssimo e espantoso em sua exploração dos mistérios do corpo. Considerada uma das raras vozes surrealistas da literatura latino-americana, a escritora uruguaia desenvolve narrativas em que o absurdo se apresenta em imagem alucinatórias, vivenciadas sem espanto pelos personagens.
As heroínas de Di Giorgio são inevitavelmente mulheres, amiúde em seus momentos de desvirginização ou casamento. São tão importantes seus atos quanto as formas que brotam de seus corpos em mutações espontâneas. O ambiente é natural, como na infância da autora – conhecida no Uruguai por apresentar recitais arrebatadores de seus poemas em teatros e casas noturnas, vestida de gala, rodeada de flores e descalça. O mundo infantil é uma presença constante também nos devaneios desatinados de suas personagens, muitas vezes em plena transição para a vida adulta. “A obra marosiana é, do início ao fim, motivada por impulsos libidinosos”, escreve Moraes, que destaca “um estranhíssimo humor obsceno”.
O ateneu, de Raul Pompeia
Em 1888, Raul Pompeia era um jovem advogado e escritor fluminense bastante conhecido no meio jornalístico e literário da Corte, sobretudo por suas crônicas, reportagens, contos e poemas em prosa publicados em periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo.
O romance, que mistura ficção e autobiografia, narra as experiências de Sérgio, um tímido pré-adolescente de onze anos como aluno interno no Colégio Ateneu, conhecido como a melhor instituição de ensino do Império. Os cenários do colégio e sua memorável galeria de alunos, professores e funcionários são um autêntico microcosmo da vida social da época.
Eros na Grécia Antiga, de Claude Calame
Eros na Grécia Antiga, do helenista suíço Claude Calame, esboça, em múltiplos caminhos, o perfil dessa força que os helênicos divinizaram com o nome de Eros, fazendo da criança travessa o assistente de Afrodite. Partindo de uma fisiologia do amor, o estudo das ações de Eros leva a interrogar a função de poemas e de imagens que o representam, para, em seguida, examinar as instituições que ele contribui para manter e os espaços onde exerce sua pujança, produtora de relações sociais. Recuperado por filósofos e adeptos órficos, Eros se revelará finalmente o mediador de verdadeiros percursos iniciáticos.
O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022), de Eliane Robert Moraes
Da sutil insinuação à sacanagem mais escancarada, este segundo volume de contos eróticos, organizado pela professora e pesquisadora Eliane Robert Moraes, conduz o leitor por uma excitante senda construída pelos mais brilhantes narradores da literatura erótica brasileira dos últimos cem anos. Com seu pensamento filosoficamente sofisticado, a autora demonstra que ao trazer o sexo à tona a literatura trata de vida e de morte, as principais questões da existência.
O livro reúne mais de 80 textos, escritos a partir de 1922, que incluem desde mestres veteranos do erotismo, como Nelson Rodrigues e Hilda Hilst, passando por autores que transitam sutilmente pelo gênero, como Otto Lara Resende e Olga Savary, até a geração mais recente, em que as mulheres se lançam sem reservas, ombreando com os homens na forma picante com que tratam o tema.
Pornô chic, de Hilda Hilst
Em 1990, Hilda Hilst completava sessenta anos, quarenta deles dedicados à literatura. Insatisfeita com a publicação de seus livros em pequenas tiragens, o silêncio da crítica e a repercussão restrita, a poeta decidiu escrever “adoráveis bandalheiras”.
A experiência deu origem à Trilogia Obscena formada por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio — textos grotescos, Cartas de um sedutor e ao livro de poemas Bufólicas. Pornô chic reúne os quatro títulos, ilustrados, traz o inédito Fragmento pornográfico rural e fortuna crítica que aborda a polêmica fase erótica de Hilst.
Boas leituras!