Estamos de volta, com o segundo ato da newsletter de dramaturgia.
O evento de ontem foi uma maravilha, com conversas sobre o teatro no Brasil hoje e o processo de criação dramática do Leonardo. Tanto que nos inspirou ainda mais para a seleção de livros a seguir — boas leituras!
Sábias Palavras de um chihuahua, de Paola Prestes
Tanto a protagonista da peça, a roteirista Melanie, como sua vizinha, a viúva dona Kiki, buscam dar um sentido às suas existências em meio a transformações pessoais, políticas e sociais. Os diálogos entre as duas revelam não só diferenças, como o vácuo geracional, mas pontos comuns, como uma intensa inquietude perpassada de angústia e solidão, e a perplexidade diante da inesperada ausência de amor.
Nessa belíssima peça, Paola Prestes coloca diante de nós uma importante questão existencialista, sobre o ser particular que tem de estar consciente de si mesmo, ser responsável por si mesmo, se pretende tornar-se ele mesmo. Em outras palavras, eu sou porque em algum momento eu posso não ser (morrer). É a confrontação com o não ser, a morte, ou a vaidade da nossa existência, que acende a nossa vitalidade e confere sentido à vida." — Sérgio Ferrara, diretor teatral
Linguagem e vida, de Antonin Artaud
Cem anos após seu nascimento, Antonin Artaud continua a perturbar profundamente a cultura ocidental. Repudiando com a mesma indignação o naturalismo estéril e o esteticismo dos formalistas, Artaud devota-se à utopia de uma arte terapêutica da alma, onde a vida é celebrada em ritual sagrado. Caleidoscópio de textos, sua obra cartas e manifestos, roteiros e projetos em constante reelaboração, que a editora Perspectiva traz agora ao leitor brasileiro não pode ser vista como um ensaio datado na história da arte. A presente antologia, ladeando suas poesias e seus depoimentos, sua técnica e sua linguagem, revela um artista coerente no múltiplo: reiventa-se aqui o teatro e o cinema, sonha-se a partir da pintura e da poesia fecundos presságios de demiurgo. A ferida da crueldade artaudiana permanece aberta. Sua linguagem inaugural, hieróglifo vivo a ser decifrado, semente dos happennings e das criações coletivas, de Grotowski e de Robert Wilson, convida a um percurso ainda arriscado pelos obscuros caminhos da criação.
O que você está olhando (1913-1920), de Gertrude Stein
O teatro de Gertrude Stein é novo em muitos sentidos. As 18 peças reunidas neste livro são consideradas pelos teóricos do teatro pós-dramático — o teatro de hoje — como modelos que ainda precisam ser mais bem explorados pelos leitores e encenadores.
Avessa a criar tramas e personagens, como já se sabe, Gertrude Stein dedicou-se a inventar estruturas linguísticas. O seu “estilo” se tornou tão fundamental que, nas suas peças, suplantou definitivamente os “temas”, como bem observou Richard Kostelanetz. Por isso, nas criações da dramaturga norte-americana, as palavras se tornam sempre objetos autônomos, ou seja, são elas mesmas e não símbolos de alguma outra coisa. O leitor deverá, assim, durante a leitura das peças, dedicar especial atenção às palavras, sem se preocupar muito com o conteúdo.
King Kong Fran, de Pedro Brício e Rafaela Azevedo
No monólogo King Kong Fran, a figura da tradicional atração circense da mulher-gorila é usada para falar de sexualidade e de distinção de gênero como construção social. Subvertendo a lógica patriarcal, a personagem Fran, encarnada por Rafaela Azevedo, convida o público a conhecer o avesso dos estereótipos do que se entende comumente por feminino, invertendo de maneira cômica e irônica a lógica machista. Ao criar cenas que refletem sobre os papéis destinados a mulheres na vida e na arte circense, o jogo de cena de King Kong Fran evidencia a rotina de constrangimentos sofridos pelas mulheres e reafirma a objetificação, a violência, o assédio, o silenciamento e a pressão estética que são amplamente naturalizadas no dia a dia.
Desde que estreou, em novembro de 2022, este monólogo já levou milhares de pessoas ao teatro e foi indicado para Prêmio de Humor 2023 nas categorias Espetáculo, Direção e Performance.
Uma tempestade, de Aimé Césaire
Uma tempestade propõe uma releitura feita a partir de A tempestade, de William Shakespeare, uma das últimas peças escritas pelo autor inglês, que trata de relações de legitimidade e usurpação. As reinterpretações latino-americanas desta peça têm explorado a dinâmica entre Próspero, o colonizador europeu, e seus auxiliares escravizados, Ariel e Calibã. Próspero, que foi usurpado de seu ducado, torna-se o usurpador da ilha que pertencia a Calibã: ele lhes ensina sua língua e acredita tê-los "civilizado". Ao adaptar a peça do dramaturgo elizabetano para um teatro negro, enfatiza-se que a peça deve ser interpretada por um elenco negro, sobretudo porque o autor martinicano adiciona à caracterização de Calibã como um escravo negro, e Ariel é retratado como um escravo negro de pele clara, referido como mulato no original.
O foco principal de Césaire nesta versão é o personagem de Calibã, a quem ele associa aos Panteras Negras norte-americanos. Em sua interpretação, o autor se indigna com a brutalidade e arrogância de Próspero, retratado como um homem indulgente, o que lhe pareceu refletir a típica mentalidade europeia. Sua proposta é apresentar uma nova perspectiva, a do colonizado, questionando a visão eurocêntrica da obra original. Ainda, Césaire explora os efeitos da colonização sobre a cultura e identidade dos povos nativos, além de debater sobre as relações de poder e controle entre colonizador e colonizado.
Circo-Teatro, de Benjamin de Oliveria e a Teatralidade Circense no Brasil
Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil é a biografia do palhaço, acrobata, ator, instrumentista, compositor, ensaiador, dramaturgo e empresário Benjamim de Oliveira feita pela historiadora Erminia Silva. Com um amplo e bem documentado levantamento histórico da vida desse artista múltiplo, um palhaço de pele negra que não aceitou o papel subalterno reservado a ele pela cultura branca dominante, a autora, que é uma das mais importantes pesquisadoras dessa linguagem no Brasil, fala também sobre o desenvolvimento do circo no país a partir do final do século XVIII. Erminia faz a figura ímpar de Benjamim transitar pela rica história das famílias circenses, brasileiras e estrangeiras, que encantaram multidões, e revela preciosidades sobre outros artistas da época também formados na escola do circo: uma escola informal, mas rigorosa, que transmitiu práticas e saberes seculares às novas gerações sobre esta linguagem artística complexa, dinâmica e popular que, por séculos, tem encantado gerações independentemente de gênero, faixa etária, poder aquisitivo ou grau de instrução.
Uma noite em cinco atos, de Alberto Martins
Épocas distintas se verticalizam no presente do nosso século, tornado comum a Álvares de Azevedo (1831-1852), Mário de Andrade (1893-1945) e José Paulo Paes (1926-1998). Contemporâneos todos, quebremos também as paredes dos sonhos e reconheçamos as "tarefas inconclusas" que sempre couberam aos poetas, sobretudo os que fazem crer que a mais alta beleza é indício de ainda mais altas necessidades. Sim, a perspectiva do autor é romântica: o lirismo machucado e reflexivo, os jogos do humor e a acidez da paródia são recursos que, em vez de minarem, acentuam a necessidade de ouvir poetas conversando entre si, unidos não pela morte, mas pela vida nova de um espaço/tempo em que Zé Paulo pode dizer a Álvares: "aqui você é que é novo e eu sou o velho". Um desafio para ambos (e também para Mário de Andrade, que ao diálogo entre eles vem juntar a companhia de um pesado e misterioso silêncio) é compreender São Paulo, a quarta personagem, cujos espaços se abrem tanto aos dejetos industriais como à mais sofisticada instrumentação tecnológica. Mas a questão de fundo é ponderar a poesia. "Será um exagero dizer que falo em nome de muitos?" - pergunta Zé Paulo ao poeta adolescente.
Dentro dessa noite paulistana, a um tempo geográfica e cósmica, as personagens não são fantasmagorias: dão corpo às tensões agudas que entrelaçam sentimento e história, corpo e imaginação. A certa altura Álvares de Azevedo diz a Zé Paulo que desconfia não estar preparado para ouvir a "sinfonia do século" (representada num turbilhão de ruídos urbanos em altíssimo volume). E nós, estamos? Para interrogar o curso da modernidade em perspectiva lírica, bem como para aferir o sentido do poético no tempo atual, Alberto Martins faz caminhar três poetas queridos seus, numa cidade afetivamente sua, enfrentando questões que não são apenas suas.
Dramaturgias fraturadas, de Evaldo Mocarzel
Por meio do registro cinematográfico da produção dos espetáculos de alguns dos principais grupos do Brasil, sediados em São Paulo, Evaldo Mocarzel mergulha na efervescência do nosso teatro contemporâneo.
A experiência acumulada ao trabalhar com esses coletivos, como documentarista ou dramaturgo, propicia que o autor nos leve para a intimidade dos seus processos criativos.
Partindo da base conceitual de cada grupo e em diálogo com seus participantes, somos apresentados aos rastros processuais – as improvisações; as pesquisas; as respostas, às vezes inesperadas, do público; e a interação, às vezes tensa, com o espaço urbano – que em cada obra colaborativa vão decantando os textos e as montagens. Dramaturgias Fraturadas atesta a crença na força da produção coletiva para as artes cênicas e para as nossas sociedades cada vez mais fragmentadas.
Minha sombra luminosa: o encontro do poeta Mario Quintana com a fotógrafa Liane Neves, de Tomás Fleck
Inspirada em fatos reais, Minha Sombra Luminosa conta a história de Liane Neves, uma jovem fotógrafa que recebe a missão de registrar o poeta Mario Quintana para uma homenagem ao seu octogenário no ano de 1986. Entusiasmada com a oportunidade, Liane descobre que vários fotógrafos consagrados foram dispensados antes dela devido à teimosia de Mario. Isso porque o poeta, a essa altura da vida, não está interessado em receber homenagem alguma e se sente incomodado com cada foto que tiram dele.
Então, Liane adota uma estratégia ousada: se hospeda no mesmo hotel em que Mario reside. Fingindo ser uma vizinha, ela se aproxima do poeta, sem revelar a intenção de fotografá-lo. Acontece que Liane se surpreende ao perceber que tem mais coisas em comum com ele do que poderia imaginar. E Mario por sua vez, se sente instigado com a presença da jovem que lhe faz refletir sobre suas convicções.
Black Brecht, de Dione Carlos
Perante o Supremo Tribunal do Reino das Sombras apresenta-se Luculus Brasilis, o general civilizador, que precisa prestar contas da sua existência na terra para saber se é digno de adentrar no Reino dos Bem-Aventurados. Sob a presidência do juiz dos Mortos, cinco jurados participam do julgamento: um professor, uma peixeira, um coveiro, uma ama de leite e um não-nascido. Estão sentados em cadeiras altas, sem mãos para segurar nem bocas para comer, e os olhos há muito apagados. Incorruptíveis.
Livremente inspirado na dramaturgia de "O Julgamento de Luculus", de Bertolt Brecht, Dione Carlos, em colaboração com o diretor da peça Eugênio Lima e com o coletivo responsável pelas intervenções dramatúrgicas Legítima Defesa, une classe, raça, gênero e o legado colonial destas construções sociais. O texto se divide em três tempos não lineares: o 'tempo dos vivos', o 'tempo dos mortos' e o 'tempo dos não nascidos'. Um modo de produção de oferenda na esquina do futuro, como diz o diretor Eugênio Lima. Durante a pesquisa, o coletivo Legítima Defesa se debruçou sobre aquilo que começou como uma provocação: "E se Brecht fosse Negro?". Qual seria o lugar ocupado pela raça? Sua obra seria lida em uma perspectiva interseccional? Seria possível construir um espetáculo sobre uma perspectiva afro brasileira diaspórica da obra e dos procedimentos de Brecht?
E ficamos por aqui. Todos os livros estão disponíveis na livraria física e no nosso site.
Até a próxima!