Para alguns, 2023 foi um ano que passou voando. Para outros, foram dez anos dentro de um. Como livreiros, recomendamos livros dia sim e dia também, para pessoas que procuram as coisas mais diversas: um livro para presentear um amigo que não gosta de ler, livros de romance sobre chocolate, histórias de terror situadas em São Paulo, gente que só lembra que a capa do livro era azul, livros parecidos com os da Carla Madeira (mas que não são da Carla Madeira), gente que nunca vem buscar os livros encomendados, aqueles procurando livros em PDF em uma livraria física, e gente que vem todo dia para fotografar o gramofone que enfeita a área do café.
Livreiros também são gente; se dados a chance, vamos acabar recomendando nossas leituras preferidas dos últimos tempos. Pensando nisso, com o ano chegando ao fim, decidimos reunir nossos livros favoritos de 2023 — que também podem acabar se tornando suas leituras para 2024.
Escolhas da Julia
Latim em pó, Caetano W. Galindo.
Minha primeira compra oficial na Ponta de Lança, lá por meados de maio. Apesar de ter comprado o livro esperando uma leitura mais técnica e acadêmica, a escrita fluida e casual de Caetano W. Galindo — que leva o leitor num verdadeiro passeio pela formação dessa nossa língua, primeiro do outro lado do oceano e depois aqui, em terras brasileiras — rapidamente levou o título para o topo da lista. Foi o tipo de livro que, antes mesmo de terminar, já recomendava para todo mundo que via. (E sem querer, fiz com que boa parte dos meus professores e colegas da turma de Letras o lessem também).
Com o intuito de expor o trajeto de formação da língua portuguesa, o novo livro do professor, tradutor, pesquisador e escritor Caetano W. Galindo instiga o leitor a se questionar sobre o idioma que utiliza no dia a dia. Através de uma prosa fluida e envolvente, Galindo não só reconstitui a história de nosso idioma como também fala sobre os desvios, muitas vezes considerados “erros”, que formam e modificam a língua desde sua criação. Começando pela Europa e pelo latim, com especial atenção a Roma, passando pela Reconquista e pelo colonialismo na África e na América Latina, o autor traça um panorama amplo e compreensível da nossa língua materna.
Pachinko, Min Jin Lee
Um essencial para quem se interessa (ou está começando a se interessar) por literatura coreana. Fiquei sabendo desse livro através da recomendação de um dos meus artistas preferidos, e logo corri para encontrar o meu. Se trata de um romance histórico percorrendo quase quatro gerações de uma mesma família, que é forçada a deixar a Coreia no início da colonização japonesa do território — e impedida de retornar após a conquista da independência coreana, por conta da divisão das Coreias. Uma história sobre pertencimento, traumas geracionais e identidade, através da escrita envolvente e emocionante da autora.
Neste romance movido pelas batalhas enfrentadas por imigrantes, os salões de pachinko ― o jogo de caça-níqueis onipresente em todo o Japão ― são o ponto de convergência das preocupações centrais da história: identidade, pátria e pertencimento. Para a população coreana no Japão, discriminada e excluída ― como Sunja e seus descendentes ―, os salões são o principal meio de conseguir trabalho e tentar acumular algum dinheiro.
Uma grande história de amor, Pachinko é também um tributo aos sacrifícios, à ambição e à lealdade de milhares de estrangeiros desterrados. Das movimentadas ruas dos mercados aos corredores das mais prestigiadas universidades do Japão, passando pelos salões de aposta do submundo do crime, os personagens complexos e passionais deste livro sobrevivem e tentam prosperar, indiferentes ao grande arco da história.
A Rua, Ann Petry
Essa foi uma recomendação vinda diretamente da Editora Carambaia, que publicou a obra. Quando fomos visitar a editora, através do projeto Ponta de Lança nas Editoras, foi o título nomeado quando perguntamos sobre o melhor livro dentro do catálogo da Carambaia. Também acabou se tornando um dos melhores presentes que recebi esse ano. Situada no Harlem pós-guerra, o livro narra a história de uma mãe solteira que luta para conseguir criar seu filho enquanto batalha contra inimigos intangíveis: o racismo, o sexismo, e é claro, a própria rua na qual vivem. É o tipo de livro que você não consegue largar até o final, e o final te deixa completamente desnorteado. Emocionante, envolvente e arrepiante.
Publicado em 1946, A rua, de Ann Petry (1908-1997), tornou-se rapidamente o primeiro romance de uma autora negra a superar a marca de 1 milhão de exemplares vendidos nos Estados Unidos –- e bateu o recorde com folga: vendeu 1,5 milhão de cópias. No cânone da literatura afro-americana, contudo, a autora nem sempre foi devidamente lembrada, apesar de ter alcançado um equilíbrio raro: uniu observação social implacável a características da melhor tradição do thriller, sendo comparada a clássicos do romance policial como Raymond Chandler e Patricia Highsmith.
Mais de sete décadas depois de sua primeira edição no Brasil, o romance de Ann Petry recebeu nova tradução, de Cecília Floresta, e vem acompanhado do posfácio da escritora americana Tayari Jones. A maior parte do enredo se desenvolve, efetivamente, em uma rua, a 116th Street, que tem papel-chave na vida da protagonista, Lutie Johnson, que tenta sobreviver com um filho de 8 anos no tumultuado bairro nova-iorquino do Harlem. Nas palavras de Tayari Jones, “a 116th Street é a resoluta antagonista e representa a intersecção entre racismo, sexismo, pobreza e fragilidade humana”.
Escolhas da Lívia
Argonautas, de Maggie Nelson
Um paralelo entre o corpo em transformação durante a gravidez da Maggie e durante a transição de gênero de seu parceiro Harry, Argonautas quebra com as convenções do que um livro autobiográfico, memorialístico e teórico deveria ser. Um ensaio do seu passado, presente e futuro, daquilo que muda dentro e fora, sinapses entre as leituras e cada sentimento que aflora nesses períodos de intensa transformação da pele e da mente.
Este livro de Maggie Nelson, vencedor do National Book Critics Circle Award em 2015 e escolhido como um dos livros do ano pelo New York Times, é uma autobiografia que subverte o gênero. Uma obra de “autoteoria” que traz ideias atuais, destemidas e oportunas sobre desejo e identidade, sobre as limitações e as possibilidades do amor e da linguagem. Seu tema central é um romance: o relacionamento da autora com o artista Harry Dodge. Ela narra a experiência de se apaixonar por Dodge, uma pessoa de gênero fluido, bem como o caminho percorrido até e durante sua gravidez. No rastro de intelectuais populares como Susan Sontag e Roland Barthes, a autora atrela sua experiência pessoal a uma análise rigorosa do que importantes teóricos disseram sobre sexualidade, gênero, casamento e educação infantil.
Sobre aquilo em que eu mais penso, de Anne Carson
Gostei tanto desse livro que rasguei uma das páginas e colei na página do meu quarto. Carson caminha por séculos de literatura com tanta fluência e poesia, e cada ensaio é mais surpreendente, engraçado e profundo que o outro. Os meus preridos: Descriação: de que modo mulheres como Safo, Marguerite Porete e Simone Weil contam de Deus; Ensaio sobre aquilo em que eu mais penso, e Toda saída é uma entrada (um elogio ao sono).
Helenista, poeta e tradutora, a canadense Anne Carson é uma das escritoras mais originais da contemporaneidade e autora de uma obra dedicada a dissolver as fronteiras que separam pesquisa de invenção, criação de crítica e tradução de autoria.
Esta coletânea, organizada por Sofia Nestrovski e Danilo Hora, apresenta essa obra pelo prisma do ensaísmo, reunindo onze textos, escritos num arco de mais de uma década e todos eles inéditos no Brasil, em que a autora de Autobiografia do Vermelho aproxima os autores aparentemente mais distantes, como Virginia Woolf e Tucídides, Homero e Elizabeth Bishop, Longino e Antonioni, Francis Bacon e Joana D’Arc.
Anne Carson é autora de uma obra dedicada a dissolver as fronteiras que separam pesquisa de invenção, criação de crítica, tradução de autoria. Esta coletânea, que transita por diferentes modos de prosa e poesia. Ao longo de onze textos, escritos num arco de mais de uma década e todos eles inéditos no Brasil, Sobre aquilo em que eu mais penso oferece uma visão abrangente dos principais interesses que movem o pensamento desta que é uma das autoras mais originais da contemporaneidade.
Coisas que vi, ouvi, aprendi…, de Giorgio Agamben
Um livro que se lê em um dia e que se pensa pro resto da vida. Semelhante ao Argonautas, aqui, Agamben também escreve sua vida a partir das leituras, com todo o poderio filosófico e poético que sempre traz aos seus textos.
Fragmentos, textos brevíssimos de timbre poético no limar de desaparecer. Neste livro, de tom melancólico e final, Agamben refaz a própria vida entrelaçando-a aos ensinamentos aprendidos dos amigos, livros, lugares e escritores. O passo é leve, a atmosfera frágil, a luz tem o lampejo da iluminação. Como um tomar de notas para um testamento impossível, como escrever o próprio nome depois de o ter esquecido: Coisas que vi, ouvi, aprendi… parece a tentativa de recordar esse nome, soletrá-lo em voz baixa, como se faz quando se aprende uma língua. Por isso, as palavras de Agamben ressoam últimas, ou penúltimas, assim como é a verdade; em busca da inocência da infância, do primeiro escrito que tinha em si tudo o que o adulto procurou em vão explicar, Agamben toma notas daquilo que resta dos mestres, e deles absorve a sabedoria manifestando-a) como um odor: amargo, meditativo, com frequência sereno, livre. Nenhum outro livro de Agamben se parece com este, nenhum tem o tom alto e cristalino de quem lutou até a última gota de sangue com a linguagem, e voltou para testemunhar.
Menção honrosa: O Guia Fantástico de São Paulo, de Ángela León
O livro que mais dei de presente este ano.
O Guia Fantástico de São Paulo, da espanhola Ángela León, apresenta a espetacular metrópole do hemisfério sul por meio de desenhos e textos. O livro faz de sua leitura um passeio pelas belezas menos evidentes da urbe, como a espetacular natureza que brota por toda parte ou as águas cristalinas dos seus mais de 300 rios. A autora faz uma celebração do lado mais cotidiano, autêntico e incrível da capital paulista. Recomendado para quem vê uma cidade, mas sonha com outra.
Escolhas do Paulo:
Viagem ao Volga, Ahmad Ibn Fadlan
Não poderiam, as crônicas épicas de uma jornada pelo seio das paragens asiáticas no décimo século da era cristã, ser mais distantes de tudo que considero posto em minhas condições de existência. A distância, no entanto, logo se ausenta quando das palavras de Ahmad Ibn Fadlan faz-se uma jornada pela linguagem e pelos costumes dos povos com os quais se defronta a caravana do cronista no hiato da viagem. As gentes descritas no livro são tanto mais distantes para o leitor quanto para o escritor e é neste reconhecimento contíguo 一 comum ao leitor e à voz narrativa 一 da alteridade insólita que nasce o prazer dessa leitura.
O relato do viajante árabe Ahmad Ibn Fadlān, publicado sob o título Viagem ao Volga – relato do enviado de um califa ao rei dos eslavos, é um dos testemunhos históricos mais surpreendentes de seu tempo. Ibn Faḍlān integrou, no século X, uma expedição saída de uma das capitais do império islâmico, Bagdá, rumo às terras do Norte, até deparar com um assentamento viking às margens do rio Volga.
2. Sete Noites, Jorge Luis Borges.
Mesmo cego, Borges nunca deixou de ler. Tinha códices completos que carregava consigo pelas alças da memória e versos aos quais sempre retornava. Em 1977, ministrou uma série de conferências no Teatro Coliseo de Buenos Aires sobre literatura. O livro, composto das transcrições destas palestras, aparenta falar diretamente ao leitor e a ternura na voz de Borges, como que dirigida a um antigo conhecido, ressoa por todos os ensaios.
Meu texto preferido: As mil e uma noites
Reunião de duas coletâneas de conferências proferidas pelo grande autor argentino sobre os mais diversos temas - do tempo e da imortalidade à poesia e à cabala - demonstra a genialidade e a versatilidade do Borges orador.
Absalão, Absalão!, William Faulkner.
A quase barroca articulação de narrativas que Faulkner produz em sua escrita é particularmente impactante em Absalão, Absalão! As terríveis agruras do Sul estadunidense são cristalizadas no destino de uma família que, ela mesma, morre mais de uma vez. Nada é dito, em seu lugar, a narrativa é feita de muitas tensões e movida, quase sempre, pela consumação do ato trágico, independente de qual seja. As memórias sangrentas das quais fazem-se o livro vivem em rubros sentimentos durante a leitura.
Numa narrativa composta de fragmentos delirantes de passado, o prêmio Nobel de literatura de 1949 William Faulkner conta a história da ascensão e queda do self-made man Thomas Sutpen que, vindo da miséria das montanhas do estado da Virgínia, torna-se o maior plantador de algodão do condado fictício de Yoknapatawpha. Publicado em 1936, Absalão, Absalão! revisita, através do apuro da técnica modernista, temas comumente identificados a certo gótico sulista, colocando assim em julgamento o estatuto do romance como gênero e construindo uma das mais brutais jornadas ao coração alucinado do século XX.
Escolhas do Bruno:
A nudez da cópia imperfeita, de Wagner Schwartz
Ler A nudez da cópia imperfeita é atravessar o deserto, o escrachamento, e ser arrebatado pela verdade mais sincera de um homem inocente.
Uma performance de um artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2017 torna-se motivo de comoção e violência. Enquanto apresentava uma releitura da obra Bichos, de Lygia Clark, na qual punha o próprio corpo nu à disposição do espectador para ser manipulado, Wagner Schwartz teve seu corpo (sua obra) relado por uma criança, a filha de uma grande amiga sua, que estava no recinto no momento da apresentação. Um vídeo do momento foi capturado, retirado completamente de seu contexto e disseminado internet afora. Rapidamente uma enxurrada de ódio, violência e selvageria passou a ser direcionada ao artista. Nem perto de poucas foram as ameaças de morte que Schwartz sofreu.
Neste relato visceral e experimental, no qual se fundem instalação e texto, performance e palavra, obra e autobiografia, Wagner Schwartz oferece um testemunho inigualável do artista vitimado pelo autoritarismo, pela sombra perene da violência, por um engenhoso e dissimulado mecanismo de censura que mesmo nos espaços (e países) ditos democráticos vige.
Janelas irreais: um diário de releituras, de Felipe Charbel
O retorno ao tempo em que fomos felizes, um diálogo entre ficção e ensaio, transformando nossa memória lida em memória vivida. Um diário para nos vermos enquanto leitores e nos prefaciarmos nas leituras de outro.
Janelas irreais – um diário de releituras, de Felipe Charbel, transita entre a ficção e o ensaio, ao apresentar um narrador que relê alguns romances decisivos na sua formação como leitor e toma notas dessas leituras. O seu propósito é voltar a livros que o fizeram feliz (como Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño; O teatro de Sabbath, de Philip Roth; Quase memória, de Carlos Heitor Cony; Ruído branco, de Don DeLillo), e procurar, nessas obras, traços da pessoa que foi em outras épocas. As entradas do diário vão se ampliando, e no “absurdo fluxo dos dias”, um intervalo de quase dois anos, elas terminam por revelar bem mais que as memórias de um leitor: é que a realidade de quem narra vai se misturando à matéria tratada nos livros, sem que se possa definir com clareza onde termina a leitura e começa a escrita, ou de que modo a vida se distingue da ficção.
As flores do bem: A ciência e a história da libertação da maconha, de Sidarta Ribeiro
Este livro nos conduz pelas mais novas descobertas científicas a respeito do uso medicinal da deliciosa planta do bem. Sidarta se revela, se desnuda em suas relações familiares e com o divino. Um baita livro lido numa sentada só.
Com a linguagem acessível que caracteriza a obra de Sidarta Ribeiro, este livro propõe combater a desinformação acerca da maconha, mesclando história, cultura e depoimentos pessoais com rigor científico. Em As flores do bem, Ribeiro apresenta um breve histórico da erva milenar e descreve como os feitos coletivos humanos conseguiram domesticar uma planta de incrível versatilidade, cuja história se confunde com a de nossa espécie. Fosse cânhamo para produtos navais na Europa e teares na China ou unguento medicinal na Índia e na África, a maconha sempre esteve presente na sociedade e evoluiu conosco, elevando a qualidade de vida da humanidade.
As flores do bem não é, portanto, apenas um livro de divulgação científica: é a contribuição de um dos maiores cientistas brasileiros para um debate urgente, na forma de um libelo que busca romper preconceitos e abrir o diálogo. Com franqueza e humanidade, Ribeiro mostra como a maconha mudou os rumos de sua história familiar e de sua trajetória profissional e religiosa. E mesmo que seja uma exposição entusiasmada da Cannabis, o autor não deixa de mencionar que nem tudo são flores. A guerra às drogas, a legislação inadequada, os preconceitos racial e moral são discutidos de modo certeiro, lembrando que por mais florescente que seja o futuro, é preciso reparar as injustiças cometidas até agora.
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