No duplo com Deborah Levy, Nella Larsen e Naomi Klein
O um vira dois e permanece um -- redobramentos na literatura
Essa, pois, é a proposta. Uma voz que fala do passado, a alguém deitado no escuro. Com uma alusão ocasional ao presente, e, o que é mais raro, ao futuro, por exemplo, Vais acabar como estás agora. E, em outra escuridão ou na mesma, um outro, criando tudo para ter companhia. — Samuel Beckett em Companhia e outros textos, 1982, p. 42.
Aquele que caminha ao meu lado sou eu. Pelas ruas vazias da cidade, traçando a rota diária. Sou uma comigo mesma. Logo, sou duas. Na dualidade, me reinvento. Exploro meu fim em novos começos. Redobro-me em reflexos, contemplo a distorção com temor. No desdobre do eu, o doppelgänger de Jean Paul, habita a estranheza. O semelhante não se faz familiar, desvia do que se é conhecido, escancara o erro. Diante do mesmo corpo em outros hábitos, sufocamos no refrato.
Como continuar os dias num corpo que já não é mais meu? Vivendo a morte do que conheço como único, abraçando as multidões. Afinal, como Beckett ensina, no espelho há companhia.
As dobras nas histórias abaixo pluralizam o eu. Narrador e personagem confundem-se. O outro sem faz presente, questionando a palatabilidade do real, turvando a silhueta de semblantes antes únicos. Resta desdobrar as folhas e lê-las.
Agosto, azul, de Deborah Levy
No auge da sua carreira, a virtuosa do piano Elsa M. Anderson abandona o palco em Viena, durante uma apresentação. Agora, ela está num mercado de pulgas em Atenas, à deriva, com a autoimagem em ruínas, observando uma mulher desconhecida, mas estranhamente familiar, comprar o último par de cavalos mecânicos que dançam quando suas caudas são puxadas para cima.
As duas usam o mesmo casaco, um sobretudo verde com cinto bem apertado e, em pouco tempo, Elsa é compelida pela sensação de que está olhando para si mesma, ela era eu e eu era ela. Uma questão central emerge do encontro: quem é real e quem não é.
Com uma narrativa de qualidade musical apropriada avançando em surtos, repetindo refrões, explorando silêncios Deborah Levy navega por temas já muito consistentes em sua obra: identidade, feminilidade, a dinâmica de poder contemporânea em processo de transformação. E coloca o duplo a serviço do seu desejo de fazer travessuras e brincar com símbolos e conexões.
Em Agosto azul, nenhum ouriço-do-mar representa apenas a si mesmo. Têm seus duplos também os pianos, os biscoitos de amêndoa, os cavalos mecânicos. Tudo são pistas para um outro evento, e isso nos impele a acompanhar a história com atenção, e voltar a ela outras vezes para, no fim, talvez, sermos capazes de responder: qual de nós é o instrumento, o piano ou o pianista?
A loucura de Hölderlin — crônica de uma vida habitante 1806-1843, de Giorgio Agamben
A vida de Hölderlin divide-se exatamente em duas metades: os 36 anos de 1770 a 1806 e os 36 anos de 1807 a 1843, que transcorre como louco na casa do marceneiro Zimmer. Se na primeira metade o poeta vive no mundo e participa na medida das suas forças dos acontecimentos do seu tempo, a segunda metade da sua existência é transcorrida de todo fora do mundo, como se, apesar das visitas esporádicas que recebe, um muro a separasse de qualquer relação com os eventos externos. Por razões que talvez fiquem ao final claras para quem lê, Hölderlin decidiu eliminar todo caráter histórico e social das ações e dos gestos da sua vida. Segundo o testemunho de seu mais antigo biógrafo, ele repetia obstinadamente “não me acontece nada”. Sua vida pode apenas ser objeto de crônica, não de uma biografia e muito menos de uma análise clínica ou psicológica. E, no entanto, a hipótese do livro é que, desse modo, Hölderlin deu à humanidade uma outra, inédita figura da vida, cujo significado genuinamente político resta ainda a medir, mas nos diz respeito de perto. “A vida habitante de Hölderlin neutraliza a oposição entre público e privado, faz com que coincidam sem síntese numa posição de paralização. Nesse sentido, sua vida habitante, nem privada nem pública, constitui talvez o legado propriamente político que o poeta dá ao pensamento. Também nisso está próximo de nós, a nós que da distinção entre as duas esferas não sabemos mais nada. A sua vida é uma profecia de algo que seu tempo não podia de nenhum modo pensar sem ultrapassar os limites da loucura.
O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde
Em 1891, quando foi publicado em sua versão final, O retrato de Dorian Gray foi recebido com escândalo, e provocou um intenso debate sobre o papel da arte em relação à moralidade. Alguns anos mais tarde, o livro foi inclusive usado contra o próprio autor em processos judiciais, como evidência de que ele possuía “uma certa tendência” - no caso, a homossexualidade, motivo pelo qual acabou condenado a dois anos de prisão por atentado ao pudor.
Mais de cem anos depois, porém, o único romance de Oscar Wilde continua sendo lido e debatido no mundo inteiro, e por questões que vão muito além do moralismo do fim do período vitoriano na Inglaterra, definida por um dos personagens do livro como “a terra natal da hipocrisia”. Seu tema central - um personagem que leva uma vida dupla, mantendo uma aparência de virtude enquanto se entrega ao hedonismo mais extremado - tem apelo atemporal e universal, e sua trama se vale de alguns dos traços que notabilizaram a melhor literatura de sua época, como a presença de elementos fantásticos e de grandes reflexões filosóficas, além do senso de humor sagaz e do sarcasmo implacável característicos de Wilde.
Helena de Eurípedes e seu duplo, de Trajano Vieira
No Egito, onde permanece durante todo o tempo da guerra entre gregos e troianos, a verdadeira Helena segue esperando fielmente que seu marido, Menelau, venha resgatá-la. Enquanto isso, a Helena de Troia – um espectro criado pelos deuses – arruína a reputação da autêntica que, sem cometer os atos pelos quais é famosa, não consegue evitar a opinião negativa que a sociedade lhe confere.
Com o desaparecimento da falsa Helena, Menelau finalmente recupera sua esposa, e a verdadeira Helena engendra um brilhante estratagema que levará o casal de volta para casa em triunfo. Helena, de Eurípides, e Seu Duplo, que a Perspectiva publica em sua coleção Signos, traz a peça clássica em tradução de Trajano Vieira, autor também do inspirado, e inspirador, ensaio introdutório, além do texto grego, compondo uma edição à altura da extraordinária criação que, ainda hoje, desnorteia os críticos por se recusar a seguir os cânones do que seria um bom drama ateniense. Quer seja entendida como uma tragédia ou como uma tragicomédia romântica, a obra-prima de Eurípides se revela a cada dia mais contemporânea.
Nem mesmo os mortos, de Juan Gómez Bárcena
Vice-reinado da Nova Espanha, século XVI. Juan de Toñanes, velho garimpeiro que ajudou a Coroa na conquista do México e agora proprietário de uma taverna decadente, recebe a missão de capturar um indígena renegado também chamado Juan e conhecido como Pai. Com “certa experiência com a espada e uma disposição mediana para a aventura”, o ex-soldado inglório aceita a empreitada e parte em busca de seu homônimo. Duas semanas é o tempo fixado para concluir a missão, mas o encargo vai além: dura meses, anos, décadas, séculos, enquanto a figura profética do Pai assume diferentes contornos e encarnações de poder.
Nem mesmo os mortos é uma viagem trans-histórica alucinada, poética e filosófica em que os personagens, o tempo e o progresso se refletem e se debatem em um jogo de espelhos enevoado. Ao norte, sempre ao norte, Juan chega a dias recentes atravessando o muro de Trump, “uma cicatriz que sutura o deserto em duas desolações iguais”.
O homem duplicado, de José Saramago
O que você faria se descobrisse que tem um sósia, dono do mesmo corpo, do mesmo rosto, da mesma voz? É o que acontece com o professor de história Tertuliano Máximo Afonso. Neste inquietante romance sobre a perda da identidade na sociedade globalizada, Tertuliano se vê lançado numa crise existencial ao descobrir que tem um duplo.
O professor de história Tertuliano Máximo Afonso descobre, certo dia, que é um homem duplicado. Ao assistir a um vídeo, ele se reconhece em outro corpo, idêntico ao dele próprio: um dos atores do filme é seu sósia. Os desdobramentos dessa história são imprevisíveis. Mas o novo romance de José Saramago, esclareça-se logo, não tem nada a ver com clonagem ou outras experiências de laboratório. O que está em jogo é a perda de identidade numa sociedade que cultiva a individualidade e, paradoxalmente, estabelece padrões estreitos de conduta e de aparência. Os romances recentes do escritor português retratam uma época de transformações que, para boa parte da humanidade, resultam mais em perdas que em ganhos. Em Ensaio sobre a cegueira, os personagens perdem a vista, sinal de um tempo em que todos parecem estar cegos. Em A caverna, artesãos perdem o emprego, incapazes de sobreviver à sociedade de consumo. Em O homem duplicado, José Saramago constrói uma ficção extraordinária, apoiada numa questão extremamente atual e inquietante: a perda de identidade no mundo globalizado.
Fantasmagoria de restos diurnos, zine de Sophia Lautert
A morte dessa vez me encontrava não como um ímpeto suicida, mas como quem suplica a invenção de outras vidas, uma outra vida que devorada pela sombra se torna luz. Com pequenos textos e fotografias, Sophia recria sonhos e iluminações.
Tenho sonhado com uma versão dupla de mim — por vezes me revelo criança, noutras me espelho em uma versão gêmea que suplica existir em um plano simbólico como me ocorreu na noite passada. Em todos esses sonhos a morte me permeia de forma silenciosa, o que estranho visto que no que o calendário adentra maio já faz mais de um ano que não penso nela. Tateio então a ideia de pequenas mortes ao invés daquela que ensaiei por anos. Ontem recebi a notícia da partida de Kenneth Ander e retorno a divagar sobre luz, cinema, encantamentos e suas pequenas revelações. Espero destemor para fazer sentido disso algum dia.
De passagem, de Nella Larsen
Clássico do movimento de renascença do Harlem, este livro é um relato impactante sobre o colorismo nos Estados Unidos.
Irene e Claire, duas mulheres negras de pele clara, não se veem desde a infância, quando uma delas saiu da pequena comunidade em que moravam para nunca mais voltar. Agora, já adultas, as duas se reencontram de forma inusitada em um hotel onde, devido à sua cor, não deveriam estar. Contudo, transgredindo, cada uma a seu modo, o que é esperado delas, Irene e Claire forjam uma relação complexa e perturbadora de amizade, inveja, pertencimento e desejo.
O Feiticeiro de Terramar, de Ursula K. Le Guin
Acender uma vela é lançar uma sombra… Terramar é um mundo mágico quase inexplorado, formado por centenas de ilhas que apresentam, cada uma à sua maneira, vislumbres de poder e mistérios. Magos, bruxas e criaturas míticas povoam esse extraordinário arquipélago. Em O feiticeiro de Terramar, primeiro volume da saga, acompanhamos Ged, um jovem feiticeiro que busca descobrir seu caminho em meio às incertezas e às imprudências da juventude. À medida que a magnitude de seu poder é revelada, a harmonia do mundo e as leis da magia são colocadas à prova: nenhum homem deve alterar o equilíbrio entre a vida e a morte. Agora, o feiticeiro precisa iniciar a jornada que o apresentará às grandiosas palavras de poder, o fará encarar dragões ancestrais, navegar por mares desconhecidos e atravessar os portões da morte, para enfrentar a sombria criatura que ameaça não só Ged e Terramar, mas os tênues limites entre luz e escuridão.
Doppelgänger - Uma viagem através do Mundo-Espelho, de Naomi Klein
Em Doppelgänger – uma viagem através do Mundo-Espelho, seu livro mais recente, a escritora e jornalista canadense Naomi Klein faz uma investigação de fôlego no submundo online da desinformação e das teorias conspiratórias. Autora de vários best-sellers e traduzida em mais de trinta países, ela analisa como funciona essa realidade paralela, um mundo invertido no qual as pessoas embarcam em uma teia de supostas verdades facilmente contestáveis e assumem discursos fanáticos, geralmente ligados à extrema-direita, repletos de violência e paranoia, fazendo a polarização das redes sociais se expandir para diversas outras esferas da sociedade.
Intelectual de esquerda e anticapitalista, como se apresenta, Naomi Klein é ativista na defesa das causas sociais e climáticas. No livro, ela usa, como ponto de partida de sua vasta análise, a confusão existente entre seu nome e o de seu “duplo” – ou doppelgänger –, Naomi Wolf. Jornalista e autora de uma obra relevante para o feminismo nos anos 1990, essa “outra Naomi” transformou-se, nos últimos anos, em uma das vozes inspiradoras da extrema-direita dos Estados Unidos. Difusora de teorias da conspiração das mais variadas, durante a pandemia mundial da covid Wolf assumiu-se negacionista, fez intensas campanhas antivacina, a ponto de acabar banida de redes sociais.
Se as duas Naomis partilham do mesmo nome, têm sobrenomes de origem judaica e até maridos que atuam na mesma área, com nome igualmente parecidos, elas não poderiam ser mais diferentes. É por isso que Klein passou do estágio de, em um primeiro momento, ignorar e até se divertir com a confusão entre ela e a sósia, até começar a obsessivamente observá-la, ouvindo horas e horas do podcast de Steve Bannon, do qual Wolf participava com frequência. A partir desse mergulho, que ela compara à queda no buraco de Alice no país das maravilhas, ela discorre sobre esse mundo-espelho, no qual “a conspiração é realidade, ficção é fato, esquerda é direita e você pode até não reconhecer a si mesmo”.
A “cultura doppelgänger” é o ângulo através do qual a autora estabelece sua envolvente narrativa e entrelaça temas aparentemente tão diversos como a cultura digital e a luta antirracista, os esquecidos do capitalismo e as verdadeiras conspirações que levaram a golpes de Estado, a covid, as vacinas e um relato pessoal sobre seu filho neuroatípico, suas origens judias e o conflito Israel-Palestina ao longo dos anos, a postura da esquerda diante do avanço mundial da extrema-direita, o surgimento do nazismo e os genocídios históricos ligados à colonização das Américas e da África, a fúria beligerante que assola várias regiões do mundo hoje.
Por aqui ficamos,
boas leituras,
Lívia, sempre dupla.
Especial, Lívia!