Todo dia faço tudo sempre igual. Acordo já cansada, passo uma hora no ônibus entre leituras, sono e licenças, recomendo livros e volto a dormir. Mas não durmo. É toada do cotidiano que batuca na minha mente, questionando: devo aceitar a monotonia? rebelar contra a incessante rotina? comprar mais cafés em novas cafeterias para exercer a busca pela beleza mundana durante mais um dia?
Nada mais faz efeito, então vou de encontro com a mesma coisa que boa parte dos personagens nos livros abaixo buscam: a literatura. Aquela que dissolve o tédio dos dias, ritmia o levantar e o deitar, abdica do poder messiânico e me desliza pelo tempo.
São histórias do temido “nada acontece”. É o dia após o outro e as reflexões nada raras vivas na bobagem das horas que passam. Boas companhias para aquelas mais demoradas, tão familiares e repetidas naquilo que chamamos de vida.
Solenoide, de Mircea Cărtărescu
O nome do protagonista deste romance poderia bem ser Mircea Cărtărescu. Mas, em vez de escritor de renome internacional e multitude de prêmios, é um professor do ensino público em um bairro periférico de Bucareste. Ainda jovem, um malfadado sarau literário enterrou de vez suas pretensões literárias, restou apenas um diário para atestar o escritor que ele poderia ter sido. Trata-se, então, de autoficção de um duplo imaginário do escritor?
Sua vida se resume a ir da escola para casa. Uma casa enorme, em forma de navio, construída por um cientista sobre um solenoide – um gerador de campo magnético que atrai todos os temas e obsessões literárias do escritor Cărtărescu, transformando a rotina do professor primário, para além do nonsense educacional e do terror do sistema de saúde, em um caracol de reflexões sobre percepção da realidade, literatura e filosofia. Tudo isso em Bucareste, capital cinzenta de um país sob regime ditatorial e empobrecido, uma cidade melancólica e sufocante, às vezes fantasmal.
Magistralmente escrita, Solenoide é uma obra monumental, que põe em xeque as próprias bases do romance.
Nada Acontece: O Cotidiano Hiper-realista de Chantal Akerman, de Ivone Margulies
Chantal Akerman criou uma obra livre e rigorosa, com filmes que alternam contenção, ordem e simetria, de um lado, com obsessão e rompantes, de outro. Neste livro, Ivone Margulies apresenta o primeiro estudo sobre a cineasta belga, procurando investigar o que acontece quando nada acontece nos seus filmes, bem como oferecer uma breve genealogia da associação entre a duração prolongada e a temática do cotidiano no cinema europeu pós-guerra. Investiga o interesse no cotidiano, que se estende do cinema neorrealista do pós-guerra até a reescrita feminista da história da mulher nos anos 1970. A análise da autora revisa a desgastada oposição entre realismo e modernismo no cinema, define a estética do hiper-realismo minimalista em contraste com o anti-ilusionismo de Godard e revela como são inadequadas as caracterizações populares dos filmes de Akerman como simplesmente modernistas ou feministas.
Mac e seu contratempo, de Enrique Vila-Matas
Novo romance de Enrique Vila-Matas, e estreia do catalão como autor da Companhia das Letras, Mac e seu contratempo revela um escritor trabalhando no ápice do estilo que desenvolveu: uma mescla entre o romance cômico, a autoficção e a crítica literária, uma literatura marcada pelo que há de mais instigante na produção pós-modernista.
Mac é um entediado homem de meia-idade, desempregado, que vive às custas da mulher, ocupando seus dias com caminhadas pelo Coyote, fictício bairro de Barcelona, e com leituras paranoicas do horóscopo -- que acredita conter mensagens codificadas direcionadas a ele. Como costuma ocorrer nos romances de Enrique Vila-Matas, a única saída para o protagonista é a literatura: somente os livros podem salvar Mac desta vida. É assim que surge a ideia amalucada de tentar reescrever o primeiro livro de Sánchez, um escritor de sucesso que, por acaso, é seu vizinho. O que está em jogo aqui é a ideia de repetição, e o que Vila-Matas parece assinalar é que toda escrita é repetição e que a criação literária é sempre evocação de algo que se leu um dia. A jornada literária deste personagem quixotesco arremessará o leitor num tornado de citações e de livros dentro do livro capaz de questionar os conceitos do que é escrever (e ler) literatura nos dias de hoje.
Sobre o cálculo do volume - 1, de Solvej Dalle
Neste primeiro volume da aclamada série da dinamarquesa Solvej Dalle, conhecemos Tara Selter, a protagonista principal da história, que está vivendo uma falha no tempo que causou a repetição de um mesmo dia em sequência: já é a 121ª vez que ela vive o dia 18 de novembro. Acompanhamos Tara em sua confusão, sua raiva e, enfim, sua solidão. Seguimos com ela em sua jornada, tentamos encontrar explicações possíveis para o que está acontecendo: por que alguns objetos somem durante a noite e outros não? O que aconteceria se ela não dormisse de um dia para o outro? Será que Tara é a única a perceber a ruptura temporal?
O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati
O deserto dos tártaros é a obra-prima de Dino Buzzati. Publicado originalmente em 1940, o livro marcou a consagração do autor entre os grandes nomes da literatura italiana e foi eleito pela crítica especializada um dos melhores livros do século XX. A obra narra a história do jovem tenente Giovanni Drogo, que recebe com alegria uma missão no forte Bastiani ― para ele, a primeira etapa de uma carreira gloriosa. Embora não pretendesse ficar por muito tempo, o oficial de repente se dá conta de que os anos se passaram enquanto, quase sem perceber, ele e seus companheiros alimentavam a expectativa de uma invasão estrangeira que nunca acontece. A espera pelo inimigo transforma-se na espera por uma razão de viver, na renúncia da juventude e na mistura de fantasia e realidade.
Vida querida, de Alice Munro
Os contos de Vida querida são ricos como romances - com personagens, tramas e vozes desenvolvidas em toda sua potencialidade -, mas, precisos como pede a tradição do gênero, prescindem de qualquer elemento que não seja essencial. O leitor, conduzido por narradores capazes de segurar a tensão do começo ao fim, se entrega a percursos surpreendentes, anunciados com sutileza e maestria em pistas esparsas. É o caso do conto que abre o livro, "Que chegue ao Japão": Greta se despede do marido e parte com a filha numa viagem de trem que acaba se tornando uma aventura conflituosa pelos caminhos do desejo feminino; em "Dolly", um casal de idosos decidido a acabar com a própria vida num gesto de cumplicidade e harmonia recebe uma visita inesperada do passado que irá abalar profundamente seus planos.
Como nas demais coleções de contos da autora, mestre da forma breve, nos vemos diante de personagens que caminham nas beiradas da existência, arrancadas do cotidiano por golpes incisivos do destino e da loucura. Mas este Vida querida tem um diferencial que o coloca num nível novo; coroando uma carreira brilhante, a última parte do livro traz as quatro únicas narrativas autobiográficas já publicadas por Munro, que emprega toda a sua habilidade literária para refletir sobre o ato de narrar, a ficção e os temas que regem sua obra: memória, trauma, morte. Vida: vida.
Misericórdia, de Lídia Jorge
Residente de um lar para idosos, uma mulher registra, em um pequeno gravador de voz, o diário de seu último ano de vida. Sua filha, autora deste romance, transcreve essa memória, atribuindo-lhe força literária na forma de um condensado de incrível vitalidade, ironia, revolta e fé na vida.
A história se passa no Hotel Paraíso, e a conhecemos por meio do olhar de Maria Alberta Nunes Amado, a dona Alberti, figura extraordinária, de complexidade notável, que narra os principais acontecimentos do local: as visitas, quem chega para ficar, quem parte (e quem tenta fugir), a convivência com as amigas mais próximas, com outros moradores e cuidadores – tudo permeado por sua curiosidade inesgotável, por sua pulsão de vida e pela força de sua mente, na contramão do corpo que, às vezes, insiste em fraquejar.
Acompanham Maria Alberta personagens que desfazem qualquer ideia maniqueísta que se possa ter sobre lares como esse e seus habitantes, pessoas demasiado humanas em suas contradições, vivências, medos e anseios, gente que, mesmo com pouco futuro pela frente, ainda sonha.
Imersos no Hotel Paraíso, somos impelidos a refletir sobre a condição humana em tempos incertos, sobre a velhice, os momentos fugazes da velhice e seus becos sem saída. Misericórdia é, entre tantas outras coisas, um diálogo entre a força e a fragilidade, o que se vive e o que se escreve, o que se sabe e o que se intui.
Bruno Schulz conduz um cavalo, de Leda Cartum e Marcos Cartum
O livro partiu do contato de Leda Cartum com a obra de Bruno Schulz, escritor e desenhista polonês da primeira metade do século XX. Em seu trabalho, imagens fantásticas se criam e se confundem tanto no texto quanto nos desenhos: temos a sensação de que são essas imagens que guiam o autor através da narrativa, e não o contrário. Em Bruno Schulz conduz um cavalo, é essa indefinição de funções que faz com que sejamos levados pelos caminhos de um cavalo à procura de algo que nem ele mesmo sabe o que é.
O conto de Leda Cartum, ganhador do prêmio Off-Flip 2014, é atravessado pelos desenhos de Marcos Cartum, criando uma espécie de caleidoscópio em que uma coisa sempre se torna outra. De certa forma, é como se os textos fossem também desenhos e os desenhos também escrita. Aqui a fusão de linguagens transcende o formato de um livro ilustrado; é difícil dizer o que conduz o quê, como no que se passa entre o cavaleiro e o cavalo.
Corações cicatrizados - Acervo 6, de Max Blecher
Emanuel estuda Medicina em Paris quando descobre sofrer do mal de Pott, tuberculose óssea que afeta a coluna vertebral. Parte para Berck-sur-Mer, balneário no litoral norte da França especializado no tratamento da enfermidade. Na cidade, 5 mil pacientes, provenientes de todos os cantos do mundo, se submetem à terapia, que consiste na imobilização do corpo por um colete de gesso. Envoltos nessa carapaça, os doentes são forçados a passar meses deitados, à espera de que seus ossos quebrados e roídos sejam endireitados e consolidados.
Mas, em Berck, eles não precisam ficar restritos à cama. Instalados nas chamadas goteiras, os enfermos locomovem-se com a ajuda de maqueiros e até sozinhos, em charretes adaptadas, puxadas por cavalos. Assim, passeiam, vão à praia, levam uma vida praticamente normal. Sempre na horizontal.
Nesse cenário, o romeno Max Blecher (1909-1938) situa seu romance Corações cicatrizados. Como o personagem Emanuel, ele também recebeu o diagnóstico do mal de Pott quando estudava em Paris, aos 19 anos. Com inesperada vitalidade e até humor, o escritor descreve a rotina dos internos do sanatório de Berck, divididos entre a imobilidade, os desejos, os encontros, as amizades, as paixões
Mundo real, de Brandon Taylor
Em seu romance de estreia, finalista do Booker Prize de 2020, Brandon Taylor narra um final de semana de um jovem negro e queer que saiu do Alabama para estudar com uma prestigiosa bolsa de estudos. Wallace perdeu o pai há semanas e nenhum de seus amigos da pós-graduação sabe disso. Sem história e identidade como só aqueles que rejeitam o próprio passado podem viver, ele mal se move pelos laboratórios da universidade, onde faz experimentos com criaturas microscópicas, e sente-se incapaz de criar vínculos com os colegas.
Desde que recebeu uma bolsa, Wallace enxerga nos estudos a oportunidade de escapar do ciclo de pobreza e violência de sua família. No entanto, na universidade, as pessoas mais próximas são também aquelas que mais lhe dão ódio e tédio. Ele não entende quando Emma, uma das poucas amigas, se emociona ao saber da morte de seu pai e quando os colegas o abordam com condolências, pressupondo um sofrimento que ele próprio acredita não sentir.
O luto, no entanto, desencadeia um desconforto novo em Wallace — como se a infelicidade fosse expurgada por uma força interna incontrolável, prestes a romper tudo o que foi conquistado. E do desassossego surge o medo: se deixar para trás o pouco que construiu para si, o que fica? Se não pode ter um passado, se não suporta seu presente, o que resta é ter um futuro — que não pode ser abandonado.
Mundo real é escrito a partir do olhar de um personagem que, dessensibilizado pela dor, julga-se frio, avesso à vida, ainda que seja profundamente sensível. Ao abordar temas que precisam ser articulados dentro e fora da literatura — violência sexual, racismo, homofobia, machismo, transtornos psicológicos, complexidades da vida acadêmica —, Brandon Taylor cria um romance de alta beleza formal, num estilo delicado e sutil, que sugere e emociona.
Novamente, como sempre, boas leituras!
amei! fiquei com vontade de ler os livros da Solvej Dalle agora. sempre certeira nas indicações 🥰