A ideia nasce no diálogo, e aquela que amparou este boletim não foi diferente. Na livraria, num dia igual aos outros, recebemos uma viajante buscando livros sobre a teoria crip, que falam sobre o cruzamento da deficiência com o gênero e a sexualidade. Naquela conversa, percebi uma lacuna nas minhas leituras e no acervo na livraria.
Não demorou muito tempo para títulos de teoria crip chegarem na livraria, pouquíssimos, já que a tal lacuna aparenta ser dominante no mercado editoral brasileiro. A tradução, publicação e irradação dessa literatura ainda tem um longo caminho pela frente. Mas como livreiros aficionados pela melhora constante da nossa curadoria, nossos corpos transfigurados em catálogos, fomos atrás de livros em que habitam corpos diferentes, sentindo o mundo com as particularidades de seus limiares.
Leitura Fácil, de Cristina Morales
Leitura Fácil é um livro iconoclasta. Cristina Morales transforma a busca de quatro mulheres com disfunção cognitiva por uma vida mais independente e autônoma em um romance radical na forma, nas ideias e na linguagem. Àngels, Patri, Marga e Nati vivem em um apartamento tutelado em Barcelona, em meio a hordas de turistas, okupas, dança inclusiva, a nova política e o machismo de sempre, cada uma com suas estratégias para enfrentar a realidade e a opressão associadas à sua condição. Elas têm distintos graus de disfunção cognitiva e manifestações diferentes: Àngels (40% de disfunção) tartamudeia, tem sobrepeso e não larga o celular; Patri (52%) sofre de logorreia e se esforça por se adequar ao que quer que seja, embora suas divagações, às vezes, a façam cair em lúcidas contradições; Marga (66%) quer dar vazão a seus impulsos sexuais, reprimidos por todos (há um processo para sua esterilização forçada) e se deprime ao tomar consciência de suas limitações; e Nati (70%), cuja disfunção não é inata e se caracteriza pela síndrome das Comportas que, quando acionadas, a isolam do mundo exterior, tornando-a incompreensível. Cada uma tem suas estratégias para enfrentar a realidade e lutar contra a opressão associada à sua condição, não lhes faltam anseios, personalidade e lampejos de lucidez cortante.
A autora não dá às suas protagonistas apenas voz, mas também corpo; a emancipação passa ainda pelo controle do próprio corpo e pela legitimidade dos desejos. O reconhecimento do desejo é tão central quanto o direito à manifestação. A emancipação passa também pelo controle do próprio corpo e pela legitimidade dos desejos — parafraseando Patri, pessoas com diversidade funcional têm direito a uma vida afetiva e sexual plena, saudável e satisfatória. E Morales nos faz ver as personagens à luz de expectativas sociais de adequação, conduta e produtividade, questionando as camisas de força relacionadas às definições de funcionalidade e como a condescendência pode ser uma forma de repressão e apagamento. Acabamos completamente envolvidos com as personagens. Leitura fácil é um livro iconoclasta, atual, ousado e divertidíssimo.
Leve como o ar, de Ada d’Adamo
Nesta narrativa sensível e dilacerante, Ada d’Adamo narra sua experiência como mãe de uma menina que nasceu com uma grave doença neurológica. Misturando memória e manifesto, Leve como o ar é uma história de amor luminosa sobre maternidade, inclusão e o sopro de vida que pode nascer mesmo da mais intensa dor. A autora relembra O acontecimento, de Annie Ernaux, afirmando haver obras com “o poder de nos conectar de novo com experiências de vida que permanecem enterradas, sob camadas de silêncio e de dor”. É esse também o retrato apurado de seu próprio romance.
O músico cego, de Vladimir Korolenko
O músico cego é uma das obras mais conhecidas do escritor ucraniano Vladimir Korolenko (1853-1921). O romance conta a história de Piótr Popélski, garoto que nasce sem enxergar. A novela mostra a trajetória do menino, suas sensações e reações, entre a luz e a escuridão, e sua sensibilidade e aptidão em relação à música. A narrativa, delicada, foi assim avaliada pelo crítico russo Alexandre Skabitchevsky: “O músico cego é a última palavra da perfeição, uma das obras mais admiráveis com as quais o mundo literário já pôde contar. Impossível pensar em um tema tão simples, com menos artifícios, e ao mesmo tempo uma análise psicológica mais profunda”.
Korolenko, considerado por Liev Tolstói “um dos principais contistas da literatura de língua russa” e comparado a Charles Dickens pelo crítico Otto Maria Carpeaux, nasceu no sudeste do Império Russo, em Jitómir, atual Ucrânia – uma região multicultural, que passou pelo domínio russo, polonês e ucraniano, onde ele situa essa novela. Com 20 anos, foi estudar em Moscou, onde se envolveu com movimentos estudantis – o que lhe rendeu uma deportação para a Sibéria. Foi lá, durante o exílio, que começou a escrever. Preocupado em denunciar injustiças sociais e sofrimentos humanos, o escritor é considerado um precursor da literatura proletária. Chamado por seus contemporâneos de “consciência de nossa época”, obteve tanto a aceitação popular como a dos meios intelectuais.
Corpos crip, de Christine Greiner
Estranhezas e corpos crip emergem por toda parte e não apenas em redutos distantes e exóticos. Eles estão na nossa casa, na vizinhança, nas histórias cotidianas, nos sonhos e, não raramente, fazem parte de nós. Mais do que abjetos sociais paralisantes, corpos crip movimentam novas perspectivas e estão sempre nos surpreendendo. Para introduzir a vasta bibliografia em torno das cripistemologias, escolhi focar em estudos publicados a partir dos anos 2000, buscando uma noção expandida de vida e inteligência. Além dos depoimentos pessoais, há um questionamento do antropocentrismo que ajuda a pensar a constituição de si como uma operação anárquica. O que me interessa é perceber como se dá a instauração de diferentes modos de existir a partir de circunstâncias fora dos padrões. Trata-se de uma lógica de reinvenção que testa desidentidades e despossessões como manifestos micropolíticos sem nenhuma expectativa ou desejo de sucesso neoliberal. Para levar adiante essa pesquisa tem sido importante dançar com alguns fantasmas. São espectros de gestos, imagens e narrativas, vivas e mortas, que insistem em desafiar certezas. Mas também é bom lembrar das vidas absolutamente comuns que, aos poucos, vão erodindo barreiras e abismos, abrindo caminhos para decantar os movimentos e garantir que ainda vale a pena acreditar.
Amêndoas, de Won-pyung Sohn
Yunjae nasceu com uma condição neurológica chamada alexitimia, ou a incapacidade de identificar e expressar sentimentos, como medo, tristeza, desejo ou raiva. Ele não tem amigos — as duas estruturas em forma de amêndoas localizadas no fundo de seu cérebro causaram isso —, mas a mãe e a avó lhe proporcionam uma vida segura e tranquila. O pequeno apartamento em que moram, acima do sebo da mãe, é decorado com cartazes coloridos com lembretes de quando sorrir, quando agradecer e quando demonstrar preocupação.
Então, no seu décimo sexto aniversário, véspera de Natal, tudo muda. Um ato chocante de violência destrói tudo que Yunjae conhece, deixando-o sozinho. Lutando para lidar com a perda, o garoto se isola no silêncio, até a chegada do problemático colega de escola Gon.
Conforme começa a se abrir para novas pessoas, algo se modifica lentamente dentro dele. Quando suas novas amizades passam a apresentar níveis de complexidade, Yunjae precisará aprender a lidar com um mundo que não compreende e até se colocar em risco para sair de sua zona de conforto.
Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva
Ao relatar o acidente que o deixou tetraplégico, Marcelo Rubens Paiva confere à narrativa a mesma energia com que transpôs a armadilha do destino.
Feliz ano velho é o primeiro livro de Marcelo Rubens Paiva. Aos vinte anos, ele sobe em uma pedra e mergulha numa lagoa imitando o Tio Patinhas. A lagoa é rasa, ele esmigalha uma vértebra e perde os movimentos do corpo. Escrito com sentido de urgência, o livro relata as mudanças irreversíveis na vida do garoto a partir do acidente. Ele é transferido de um hospital a outro, enfrenta médicos reticentes, luta para conquistar pequenas reações do corpo. Aos poucos, se dá conta de sua nova realidade, irreversível. E entende que é preciso lutar. O texto expressa a irreverência e a determinação da juventude, mesmo na adversidade, e a compreensão precoce "de que o futuro é uma quantidade infinita de incertezas".
Águas-vivas não têm ouvidos, de Adèle Rosenfeld
Louise F. habita uma margem invisível entre dois mundos. Surda oralizada, desde os cinco anos precisa preencher as lacunas provocadas por uma deficiência auditiva, atravessando o que descreve como “ondas movediças do silêncio”. As horas que passou treinando leitura labial, interpretando, deduzindo e reconhecendo sons esparsos fizeram com que ela transitasse no mundo dos ouvintes, mas sem deixar de sentir as dificuldades próprias das pessoas com surdez.
Com o tempo, a perda auditiva de Louise progride, e chega um momento em que ela precisa decidir se opta pelo implante coclear ou mergulha de uma vez no silêncio. A falta de contornos não é limitadora, ao contrário, a partir da ambivalência da personagem, Adèle Rosenfeld constrói uma narrativa delicada e imaginativa, que oferece novas miradas sobre a realidade de Louise, que é também a sua.
Em Águas-vivas não têm ouvidos, os vestígios das palavras se transformam em presença, e da fantasia da protagonista emergem figuras que acompanham seus percalços para se ajustar às expectativas de um mundo que não a reconhece: um soldado inglês a ajuda a decifrar as palavras; um cachorro a segue para todos os cantos e uma botanista a auxilia na manutenção de um herbário sonoro, espécie de diário de ruídos cotidianos em que Louise, na urgência de preservar sons dos quais tem memória, arquiva a sirene dos bombeiros, o rugir da tempestade e o chiado da fritura de cebolas.
Neste romance repleto de humor e poesia, os leitores estão submersos na imaginação vívida de sua protagonista, guiados por uma escrita onírica e sensível em que os sons têm cores, o ato de comunicar torna-se uma investigação no estilo detetivesco e as palavras se materializam, ganham corpo e escapam em um ritmo próprio.
Na busca de reconciliação e autorreconhecimento, Louise se embrenha nos buracos da linguagem que conhece tão bem e a que tem tão pouco acesso. Estrangeira na própria língua, invisível na própria deficiência, resta a ela a tarefa de encontrar, como acontece com as águas-vivas, o equilíbrio e a sensibilidade para orientar seu caminho.
ABPcD: Letras, infâncias e vidas de pessoas com deficiência, de Ana Clara Moniz e Lígia Azevedo
Nesta biografia ilustrada, Ana Clara Moniz e Lígia Azevedo apresentam 26 personalidades de diferentes gêneros, nacionalidades e áreas de atuação. Cada letra do alfabeto corresponde a uma pessoa com deficiência: são artistas, professores, cientistas, esportistas, estudantes, entre outros, que contribuíram e contribuem para a cultura em nossa sociedade.
O sonho, a curiosidade, a imaginação e a descoberta são reveladas em cada uma das narrativas literárias partindo de um momento comum a todos os biografados e leitores: a infância. Além disso, uma breve biografia e uma ilustração leve, colorida e poética, de Bruna Assis Brasil, acompanham cada um dos perfis.
Benedita Casé, Frida Kahlo, Greta Thunberg, Helen Keller, Quentin Kenihan, Nujeen Mustafa, Ursula Eggli, Vusi Mahlasela e Sol Terena são alguns nomes que compõem esse livro cheio histórias sensíveis, interessantes e divertidas.
Leitores de todas as idades vão se sentir representados por meio deste livro, que oferece uma abordagem literária que visa combater estereótipos e valorizar a diversidade.
Boas leituras!
Obrigada por me apresentar o conceito de literatura crip!
Adorei as indicações de leituras e já vou atrás desses livros! Obrigada! ♥️