Diário de Leitura: A família que devorou seus homens
Impressões de uma leitura ainda não finalizada
O clube de leitura do mês de julho na Ponta está lendo A família que devorou seus homens, de Dima Wannus, que conta com a tradução de Safa Jubran e foi publicado pela editora Tabla em 2023.
Dima Wannus nasceu em Damasco, na Síria, em 1982, e tinha menos de trinta anos quando a guerra civil implodiu na Síria. Este livro conta sobre os impactos do conflito em uma família síria, e o desmantelamento de suas relações. A narradora decide fugir para Londres junto com a mãe e, lá, reclusas e refugiadas, elas mantêm vivas as memórias de Damasco contando as histórias do passado. A filha filma as lembranças de sua mãe enquanto ela relata sobre sua família que ficou na terra natal, e elas apegam-se a esses fragmentos mnemônicos — os cheiros, as comidas, as tragédias — para digerir a perda, a culpa e a saudade.
“Uma população refugiada tem fome de linguagem e a consciência de que tudo pode acontecer. As palavras quicam. As palavras, se permitirmos, vão fazer o que querem e o que têm de fazer” (2021, p. 9), comenta Anne Carson e, em A família que devorou seus homens, as palavras transbordam de nostalgia e acalento.
As vívidas memórias documentadas no livro assemelham-se à tradição da literatura de exílio, na qual a nostalgia encharca os relatos. Como explica Svetlana Boym (2001, p. 7), a nostalgia tem a mesma raiz da palavra grega nostos que significa “voltar para casa” e é tema recorrente em mitos antigos, como a notória Odisséia de Homero, em que o herói épico passa o poema inteiro tentando alcançar e reconquistar sua casa, Ítaca. O conceito moderno de nostalgia, no entanto, é o “luto pela impossibilidade do retorno mítico”, e o nostálgico moderno está em busca de um lar espiritual.
O exilado, portanto, tenta fazer a viagem de volta à essa identidade nacional desaparecida e ao passado histórico. Quando essa rota se mostra condenada, temporária e politicamente, eles se apegam a coisas que carregam memórias daquele ponto no tempo e no espaço. Assim, a descrição da estudiosa da nostalgia como uma “emoção histórica” (p. 37) se relaciona com o anseio por uma experiência nacional passada que não mais se ajusta à realidade social e às expectativas futuras sob o exílio. A narradora de Wannus retrata esse sentimento ao montar um retalho de memórias, fiando-o com as biografias de mãe, sua vó, suas tias e suas primas.
A leitura, de início, é deslocada. É difícil saber onde aquela história estava acontecendo, as personagens, introduzidas sem nenhum fio característico, misturam-se entre si, e é demorado entender quando estávamos no passado e quando no presente. Mas, talvez, por trás dessa linguagem, existam dois motivos. O primeiro seria colocar o leitor na mesma posição incerta que a narradora e sua mãe, vivendo em um lugar estranho e tentando aprender a ordem das coisas ao longo dos dias, das páginas e da vida.
“Aquela confusão, aquela bagunça, me dava a sensação de estar em lugar nenhum. O carregamento terminou a última caixa e começou a levá-las para o caminhão. Nossa memória estava partindo em caixas numeradas e com uma breve descrição de conteúdo. Como viajar sem memórias? Chegaremos a Londres duas ou três semanas antes de ela chegar! Ter nossa memória viajando em caixas facilitou as coisas.” (p. 62)
Outro pode ser o renascimento do leitor dentro daquela família de mulheres — vivemos, então, aquela experiência do crescimento em que, quando crianças, não sabemos ainda a história de nossos familiares, mas, com os anos (ou com a leitura), as biografias vão, aos poucos, se formando. Ao longo do livro, o mesmo acontece. Conseguimos distinguir as personagens e entender as diferentes maneiras como elas lidam com a vida ao ouvir sobre suas histórias.
A narradora e sua mãe vivem esses múltiplos lutos, o de sua terra natal, de seus homens e suas mulheres. A escrita, ao documentar essas memórias, ajudam-as a processar essas perdas e, a leitura é um convite para fazer parte dessa família.
Ainda estamos envoltos por este livro e, certamente, iremos lê-lo e relê-lo até dia 20 de julho, quando será nosso encontro do clube de leitura. E deixamos aqui o nosso convite para ler A família que devorou seus homens e conversar com a gente quinta-feira que vem!