Queridas leitoras e queridos leitores, é com muito entusiasmo que apresentamos esta edição da nossa newsletter. Para começar, temos o livro do nosso Clube de Leitura de Setembro: O corpo encatado das ruas, de Luiz Antonio Simas. O encontro será dia 26 de setembro, nesta quinta-feira, às 20h (2024), e terá mediação da nossa super livreira Mariana. Quem não a conhece, terá mais essa chance. Ela é a pequena fortaleza que nos encanta com suas indicações.
Fizemos uma seleção de livros passível de ser chamada de maravilhosa embora falte muito para isso pois a Rua é um tema literário inesgotável. Simas é uma inspiração mas antes dele temos outra: João do Rio, cronista que inclusive teve sua passagem por Poços de Caldas e também escreveu A correspondência de uma estação de cura.
Apresentamos aqui livros que nos inclinam a conhecer a impressionante força brasileira das ruas, a rua que aqui que pode ser uma personagem habita pelos maladros, sobreviventes e vadios, habitada por uma sabedoria prática das vivências. A rua é uma mãe que nos ensina a dançar e a viver. É nela que colhemos os sons que permeia parte importante de nossa memória. Pipocam histórias que poderão ler nos livros indicados aqui. Esperamos que gostem.
O corpo encantado das ruas, de Luiz Antonio Simas
As ruas, como vistas por Luiz Antonio Simas em O corpo encantado das ruas, incorporam o movimento. São terreiro de encontros improváveis, território de Exu, que se manifesta na alteridade da fala e na afluência das encruzilhadas. Do Centro ao subúrbio, as tramas das ruas cariocas confundem-se com sua escrita.
Se João do Rio foi o cronista da alma encantada carioca do início do século XX, Luiz Antonio Simas aparece, cem anos depois, como o historiador do corpo do Rio de Janeiro atravessado pelas flechas do capital cultural e financeiro global. Por isso, contra a barbárie civilizatória, surgem suspiros e mariolas nas sacolinhas de São Cosme e Damião, a simpatia de São Brás para não engasgar, as conversas na feira, o cotidiano da quitanda e o boteco da esquina.
O corpo encantado das ruas reivindica a riqueza dos saberes, práticas, modos de vida, visões de mundo das culturas que não podem ser domados pelo padrão canônico. Dá um olê na historiografia oficial. Aqui, tambor e livro são tecnologias contíguas. O Parque Shanghai é tão importante quanto o Cristo Redentor. Bach é um gênio como Pixinguinha. O Museu Nacional, um território sagrado, que acumulava o axé proporcionado pelos ancestrais à comunidade.
Este não é um livro sobre resistir. É sobre reexistir. Reinventar afetos, aprender a gramática dos tambores, sacudir a vida para que surjam frestas. Para que corpos amorosos, corpos de festa e de luta se lancem ao movimento e jamais deixem de ocupar a rua.
Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez
Após mais de três décadas de sua produção original, o livro Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez, chega às livrarias de todo o país pela editora Boitempo. Trata-se do único livro que a pensadora, acadêmica e militante do movimento negro brasileiro, publicou em vida exclusivamente como autora. Escrita em 1987, a obra apresenta registros fotográficos de festas populares do Brasil de norte a sul com textos informativos que apresentam as marcas da herança africana na cultura brasileira, a integração entre o profano e o sagrado e a reinvenção das tradições religiosas na formação do imaginário cultural brasileiro.
Premiada internacionalmente na época de sua publicação, a obra continua pouco citada e pouco conhecida no Brasil, inclusive por nunca ter ido ao mercado livreiro. Como argumenta Raquel Barreto, no prefácio à nova edição da obra, esse esquecimento não é fortuito, mas sim um capítulo do violento apagamento da sua produção intelectual. Como forma de se contrapor a esse processo, a edição da Boitempo recupera o texto integral de Lélia com um novo projeto gráfico, novas fotografias e outros materiais inéditos, tais como textos de apoio de estudiosas como Raquel Barreto e Leda Maria Martins, entre outros.
Festas populares no Brasil distancia-se apenas aparentemente do conjunto da produção intelectual de Lélia, marcada pela reflexão política sobre a realidade nacional e pelo debate teórico pioneiro a respeito das intersecções entre raça, classe e gênero. Afinal, na apreciação geral das proposições da obra, o que se revela é uma intérprete do Brasil que definiu a cultura enquanto um de seus temas centrais. Nas palavras da autora, “se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a constituem.”
Vida vertiginosa, de João do Rio
Vida vertiginosa é uma das maiores obras sobre a belle époque carioca. Nela, João do Rio lança um olhar investigativo sobre o Rio de Janeiro, então capital de um Brasil em franco processo de modernização. O prefeito Pereira Passos iniciou em 1903 uma série de reformas higienistas, urbanísticas e também de costumes, com o intuito principal de adequar a cidade aos padrões de desenvolvimento europeus. A crônica pioneira de João do Rio é resultado de suas deambulações, sua flânerie, por uma cidade efervescente, em completa transformação.
Publicado originalmente em 1911, Vida vertiginosa é o testemunho criativo de um homem que registrava e pensava um mundo novo que apenas se insinuava. Um mundo que, na profunda velocidade que lhe é característica, não parou até hoje de multiplicar-se e acelerar-se na vertigem. A atualidade do livro fala por si só: conduzidos por um dos maiores cronistas brasileiros de todos os tempos, seus leitores e leitoras estão a um passo de descobrirem-se personagens.
As 25 crônicas reunidas em Vida vertiginosa abordam temas como a competitividade no ambiente profissional, a realidade paralela vivida nas favelas, o complexo de inferioridade como legado do passado colonial, a decadência do sistema educacional, a crise da privacidade, o feminismo nascente e a importância dada às aparências, aspectos já presentes na sociedade da época.
Esta é a primeira edição anotada desse clássico, construída para que leitores e leitoras contemporâneos possam conhecer o contexto histórico e cultural do Rio de Janeiro da belle époque. A edição conta ainda com introdução, cronologia e bibliografia do autor. Todo o material de apoio é assinado por Giovanna Dealtry, pesquisadora e professora de literatura brasileira do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Domingos Sodré, um sacerdote africano: Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX, de João José Reis
Seguindo as pistas encontradas em variada documentação, o livro traça a biografia de um africano liberto que circula na Bahia do século XIX e examina seus múltiplos papéis ao longo da vida: escravo, adivinho, "feiticeiro", chefe de junta de alforria e senhor.
O perfil de Domingos Sodré vem se somar a outros estudos biográficos de indivíduos que experimentaram a escravidão e depois conseguiram superá-la, como Rosa Egipcíaca, Chica da Silva, Caetana, Liberata etc. Retirados do anonimato, esses trajetos individuais permitem nova compreensão da sociedade brasileira oitocentista, crivada por tensões entre camadas sociais e códigos culturais distintos. Reinventando valores e práticas, africanos natos como Domingos funcionam como mediadores culturais no Brasil escravista: circulam entre o candomblé e o catolicismo, a medicina africana e a ocidental, a justiça dos pretos e a dos brancos. A condição de "feiticeiro" e adivinho confere a Domingos lugar social particular. Se, por um lado, é perseguido em razão de práticas "mágicas" consideradas perigosas, por outro, a posição de líder religioso permite-lhe barganhar algum espaço no mundo dos brancos.
Tomando a trajetória de Domingos como fio condutor, e cotejando-a com outros perfis e experiências, o livro traça um mapa complexo das relações sociais do Brasil do século XIX, em que violência, perseguição policial e desqualificação social de escravos e libertos combinam-se com compadrios e protecionismos de todo o tipo. Alianças perversas que, longe de contribuírem para diminuir distâncias sociais, reforçam-nas.
Rodas negras: Capoeira, Samba, Teatro e Identidade Nacional (1930-1960), de Roberto Pereira
Impossível registrar os incontáveis agentes anônimos que contribuíram das mais diversas formas para a preservação e transformação por que passaram as diversas práticas da cultura afro-brasileira, assim como para a transformação da imagem e identidade do Brasil ao longo do século XX. Filhos de santo, empregadas domésticas, balconistas, cozinheiros… desempregados, ritmistas, enfim, pessoas que possuíam em comum o fato de serem negros, pobres e sonhadores. Era esse o mesmo perfil dos populares que compunham o elenco dos espetáculos do Teatro Experimental do Negro, os shows de Carlos Machado, o grupo Oxumaré, ou as rodas de capoeira das festas de largo, na Bahia, o bumba meu boi, na periferia de São Luís, o samba de roda, do recôncavo baiano, o maculelê, em Santo Amaro da Purificação. A construção de símbolos nacionais não é resultado de uma mera escolha e imposição das elites, do Estado, do capitalismo. Não é produto de mera “apropriação cultural”. Pelo contrário, o caso brasileiro é mais um exemplo de que se trata de uma complexa disputa ou de uma verdadeira guerra cultural travada entre diversos segmentos sociais em torno de práticas geralmente locais e originárias de/ou associadas a grupos étnicos.
Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, de Edimilson de Almeida Pereira
Em Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, Edimilson de Almeida Pereira propõe dois neologismos por meio dos quais busca entender as diversas variantes da poesia e da literatura nacional. Nesta ode ao mito de Exu, orixá que tem a pluralidade como característica fundamental, o professor, poeta e ficcionista apresenta um olhar singular, pautado pela diáspora africana, sobre a construção literária no Brasil e no mundo.
Orfe(x)u, para Almeida Pereira, dá conta das manifestações literárias realistas, pautadas por questões mais concretas e calcadas na experiência, sendo representado pelo estilo de escritores como Luiz Ruffato, Marçal Aquino e Émile Zola, ao passo que Exunouveau se refere às obras em que a intuição e a imaginação são o pano de fundo. Clarice Lispector e James Joyce são exemplos dessa vertente.
A mescla de Exu com elementos da cultura europeia não é casual: neste ensaio originalmente publicado em 2017 e revisto e atualizado em nova edição, o autor defende que o orixá da comunicação e da linguagem, em toda a sua pluralidade, pode explicar tanto a literatura clássica quanto aquela de vanguarda. Com isso, ele faz da cultura iorubá um ponto de partida para entender o mundo, assim como o pensamento eurocêntrico tem feito com a própria mitologia ao longo da história.
Ao se debruçar sobre o Brasil, com a plena aceitação de que somos um país periférico, Almeida Pereira propõe a análise da nossa cultura a partir de estudos idealizados por outras sociedades fora do eixo Europa-Ocidente e mais próximas a nossa realidade.
Neste ensaio incontornável, Edimilson de Almeida Pereira apresenta uma defesa apaixonada da multiplicidade de ideias e da expansão das chaves interpretativas com que lemos a cultura mundial, possível, segundo ele, “desde que em seus horizontes possamos entrever o respeito às alteridades, a vontade de diálogo e a valorização do experimentalismo estético”. Como resultado, tal qual nos mitos eurocêntricos que comumente tomamos de base para as artes, Exu torna-se universal.
A utopia brasileira e os movimentos negros, de Antonio Risério
Avesso ao academicismo e alheio ao politicamente correto, o poeta, sociólogo e ensaísta Antonio Risério aborda neste livro atualíssimo o sempre controverso debate sobre a questão racial brasileira. Mobilizando noções de História, Política, Linguística, Sociologia, Semiótica, Estética e Antropologia com rara e poderosa intuição, o autor examina sob diferentes ângulos os mais variados aspectos relacionados ao tema, como as enormes diferenças da questão racial no Brasil e nos Estados Unidos; a influência africana em nossa história e cultura, da língua à literatura, da culinária ao urbanismo, da religião à música e ao cinema; a mestiçagem e o sincretismo como traço e valor do modo de ser brasileiro, e os movimentos negros na história do Brasil, desde a luta contra a escravidão até os atuais debates sobre cotas e ações afirmativas.
Livro escrito não para os especialistas - embora com eles também dialogue - mas para um público amplo, A utopia brasileira e os movimentos negros desloca os problemas de seus nichos habituais e revela perspectivas insuspeitadas para a compreensão da realidade brasileira.
Améfrica, do Coletivo Legítima Defesa
Em um passado recente, Beatriz Nascimento nos alertava sobre o fato da história do Brasil ter sido escrita por mãos brancas, e, portanto, sobre a ausência da história dos povos negros e indígenas nos registros escritos do país. Hoje, com a emergência de coletivos em processo de retomada por meio da arte, e seguindo o caminho pavimentado por Abdias Nascimento e o Teatro Experimental do Negro, a dramaturgia se torna um terreno fértil para o exercício de imaginação e construção narrativa, em direção a um futuro onde o direito à autorrepresentação não poderá mais ser negado. Atento ao que irradia Lélia Gonzalez em sua vital contribuição ao pensamento brasileiro, o Coletivo Legítima Defesa sabe que é tempo de buscar, investigar e dialogar com o conceito de amefricanidade. Trazer à luz da cena os processos históricos, culturais e políticos de nossa formação afroindígena e registrar essa dramaturgia, é criar a memória que se dirige contra o esquecimento, aquilombando-se nas palavras.
Boas leituras!
Feliz em ver Lélia na melhor newsletter de livros <3