Para começar esta newsletter, nada melhor que a dedicatória que Maria Firmina dos Reis fez à sua mãe e que está presente no livro que abre a nossa lista de recomendações — Cantos à beira-mar e outros poemas. Uma homenagem às mães, que nos deram a vida, a linguagem e a memória.
À memória de minha veneranda mãe
Minha Mãe! — as minhas poesias são tuas.
É uma lágrima que verto sobre tuas cinzas! acolhe-as, abençoa-as para que elas te possam merecer.
Debruçada sobre o teu peito, embalde, oh! minha mãe — no extremo da dor, e da aflição procurei inocular o calor do meu sangue nas veias onde o teu gelava-se ao hálito da morte!... verti lágrimas de pungente saudade, de amargura infinda sobre a tua humilde sepultura, como havia derramado sobre o teu corpo inanimado.
A dor era cada vez mais funda, mais agra e cruciante — tomei a harpa — vibrei nela um único som — uma nota plangente, saturada de lágrimas e de saudade...
Este som, esta nota, são os meus cantos à beira-mar.
Ei-los! É uma coroa de perpétuas sobre a tua campa é uma saudade infinda com que meu coração te segue noite, e dia é uma lágrima sentida, que dedico à tua memória veneranda.
Se alguma aceitação merecerem meus pobres cantos, na minha província, ou fora dela — se um acolhimento lisonjeiro lhes dispensar alguém; oh! minha mãe! essa aceitação, esse acolhimento será uma oferenda sagrada — uma rosa desfolhada sobre a tua sepultura!...
Sim, minha mãe... que glória poderá resultar-me das minhas poesias, que não vá refletir sobre as tuas cinzas!?!...
É a ti que devo o cultivo de minha fraca inteligência — a ti, que despertaste em meu peito o amor à literatura — e que um dia me disseste:
Canta!
Eis pois, minha mãe, o fruto dos teus desvelos para comigo — eis as minhas poesias — acolhe-as, abençoa-as do fundo do teu sepulcro.
É ainda uma lágrima de saudade ração... um gemido do coração…
Guimarães, 7 de abril de 1871 — Maria Firmina dos Reis
Cantos à beira-mar e outros poemas, de Maria Firmina dos Reis
Com textos estabelecidos a partir das publicações originais, Cantos à beira-mar e outros poemas é uma cuidadosa edição dos versos de Maria Firmina, organizada por Luciana Martins Diogo, editora da revista Firminas: pensamento, estética e escrita e pesquisadora dedicada a estudar o acervo da poeta maranhense e divulgá-lo no site Memorial de Maria Firmina dos Reis.
Mais de um século depois de sua morte, num momento de intensa e justíssima recuperação de autoras e autores “esquecidos” pela historiografia oficial, conhecer a voz poética de Maria Firmina dos Reis é fundamental para redefinir o que chamamos de “literatura brasileira”, conferindo o merecido lugar de destaque a essa poeta romântica e precursora do abolicionismo, engajada nas lutas de seu tempo e empenhada a escrever e publicar num ambiente totalmente adverso às mulheres e aos negros.
Na poesia, o leitor reconhecerá, sob a potência própria dos versos, o olhar singular da grande romancista para as chagas de sua época. Ao voltar à prosa, saberá que foi nas batalhas da poesia que se forjou essa voz incontornável das nossas letras.
Pequeno inventário dos meus erros, de Cecilia Pavón
Segundo a crítica Beatriz Vignoli, “Pavón centra estas breves autoficções naquilo que lhe falta. Ou melhor, naquilo que era suposto fazer e não fez: o romance que não escreveu, a carreira de artista contemporâneo internacional que não seguiu, a fortuna que não acumulou e a erudição musical culta que não adquiriu. Como se fosse possível (e, além disso, um dever) ter tudo isso ao mesmo tempo. Tenta, faz mal e, assim, distancia-se dos ideais absurdos da classe média e afirma a sua genuína vocação de poeta”. E seguindo sua vocação, neste breve livro sobre suas faltas, ou seus erros, Cecilia Pavón segue cativando os leitores com uma curiosa proximidade: suas vozes e seus personagens são poetas, artistas, curadores, alunos e professores de oficina literárias, além, claro, de diversos leitores. E, por que não, também é personagem o próprio texto que se escreve, que é ao mesmo tempo uma outra e a mesma chave dos seus poemas.
Em memória da memória, de por Maria Stepánova
No apartamento de sua tia recém-falecida, a narradora tem de confrontar-se com uma série de documentos do passado familiar: fotos, cartas, cartões-postais, diários e souvenirs. Ao mesmo tempo ficção e ensaio, narrativa pessoal e história coletiva, Em memória da memória é uma exploração arrebatadora acerca do que fica e do que se perde, traçada por Maria Stepánova em uma prosa lírica e permeada de curiosidade intelectual.
Não me pergunte jamais, de Natalia Ginzburg
Os textos reunidos em Não me pergunte jamais foram, em sua maioria, publicados no diário italiano La Stampa entre dezembro de 1968 e outubro de 1970. Neles, Natalia Ginzburg apresenta as suas impressões do mundo e da existência ― da existência no mundo ― por meio de sua prosa sempre expressiva e sempre única, mesclando gêneros como a crônica e o ensaio, e manifestando também as suas sensíveis inquietações (impressões, mais que críticas) em relação a textos, canções, imagens e expressões artísticas de sua época ou que marcaram a sua história pessoal. A leitura de um romance como Cem anos de solidão, a busca, de quarteirão em quarteirão, por uma nova moradia, a dificuldade de comunicar-se na infância e com a infância, a lembrança de um único verso diluído em uma ópera: elementos tão singelos que se transformam em reflexões pessoais para, depois, espraiar-se na pungente literatura à procura da interlocução, sempre ideal, sempre precária. A cada texto, o olhar compenetrado de Ginzburg convida o leitor a aproximar-se com profundidade das coisas do mundo, uma proximidade particular que nos une a todos, e desvendar as origens e caminhos do que somos.
Sobre aquilo em que eu mais penso: Ensaios, de Anne Carson
Helenista, poeta e tradutora, Anne Carson é autora de uma obra dedicada a dissolver as fronteiras que separam pesquisa de invenção, criação de crítica, tradução de autoria.
Esta coletânea, que transita por diferentes modos de prosa e poesia, foi organizada por Sofia Nestrovski e Danilo Hora com o intuito de apresentar essa obra pelo prisma do ensaísmo. Ao longo de onze textos, escritos num arco de mais de uma década e todos eles inéditos no Brasil, Sobre aquilo em que eu mais penso oferece uma visão abrangente dos principais interesses que movem o pensamento desta que é uma das autoras mais originais da contemporaneidade.
Nestes ensaios, Anne Carson é capaz de aproximar os autores aparentemente mais distantes, por meio de um olhar investigativo extremamente sensível a elementos perenes da experiência e da cultura humanas: o tempo em Virginia Woolf e Tucídides, o sono em Homero e Elizabeth Bishop, o documental em Longino e Antonioni, o intraduzível em Francis Bacon e Joana D’Arc.
Agosto azul, de Deborah Levy
No auge da sua carreira, a virtuosa do piano Elsa M. Anderson abandona o palco em Viena, durante uma apresentação. Agora, ela está num mercado de pulgas em Atenas, à deriva, com a autoimagem em ruínas, observando uma mulher desconhecida, mas estranhamente familiar, comprar o último par de cavalos mecânicos que dançam quando suas caudas são puxadas para cima.
As duas usam o mesmo casaco, um sobretudo verde com cinto bem apertado e, em pouco tempo, Elsa é compelida pela sensação de que está olhando para si mesma, ela era eu e eu era ela. Uma questão central emerge do encontro: quem é real e quem não é?
Com uma narrativa de qualidade musical apropriada avançando em surtos, repetindo refrões, explorando silêncios Deborah Levy navega por temas já muito consistentes em sua obra: identidade, feminilidade, a dinâmica de poder contemporânea em processo de transformação. E coloca o duplo a serviço do seu desejo de fazer travessuras e brincar com símbolos e conexões.
Em Agosto azul, nenhum ouriço-do-mar representa apenas a si mesmo. Têm seus duplos também os pianos, os biscoitos de amêndoa, os cavalos mecânicos. Tudo são pistas para um outro evento, e isso nos impele a acompanhar a história com atenção, e voltar a ela outras vezes para, no fim, talvez, sermos capazes de responder: qual de nós é o instrumento, o piano ou o pianista?
Os cadernos de Pagu: manuscritos de Patrícia Galvão, de Lúcia Teixeira
Patrícia Galvão, Pagu, escritora, militante e mártir, é uma garota de sorte. Viveu todas as grandezas e misérias destinadas a alguém do seu talento e coragem, e ganhou uma sobrevida que a tornará para sempre objeto de estudo e espanto. Para isso, conta com uma tutora inestimável: Lúcia Teixeira, criadora do Centro Pagu Unisanta, em Santos, abrigo de mais de três mil documentos e imagens catalogados, digitalizados e fonte para tudo que lhe diga respeito. Os livros, filmes e exposições que produz sobre ela revelam uma mulher à prova das biografias convencionais e a salvo do realejo modernista. Tudo que nasceu das mãos e do coração de Pagu importa – e é isto que Lúcia nos oferece a cada título. O último, mas não o derradeiro, é este Cadernos de Pagu, um apanhado de manuscritos, esboços e rabiscos que nunca tinham saído das gavetas, trazendo à luz ficções, cartas, provocações, reflexões e peças de teatro de cuja existência nem suspeitávamos. O simples fato de terem chegado ao nosso tempo é um milagre. O de estarem agora em nossas mãos é um milagre e meio. — Ruy Castro
Afetos ferozes, de Vivian Gornick
A história de um elo delicado e muitas vezes exaustivo, a crônica de uma ligação que define e limita ao mesmo tempo. O retrato de uma sociedade e de uma era em que as mulheres começaram a se tornar protagonistas de suas histórias. Crítica, jornalista e ensaísta experiente, Gornick perambula pela Manhattan da década de 1940 com sua mãe idosa. Ao longo desses passeios repletos de lembranças, reprimendas e cumplicidades, conhecemos a história da luta de uma filha para encontrar o seu lugar e a sua voz no mundo. Escrito com uma clareza atordoante que fascina desde a primeira linha, Afetos ferozes coloca a família, a palavra escrita e a força inesgotável das mulheres como grandes protagonistas.
Os grandes carnívoros, de Adriana Lisboa
Adelaide integrou um grupo de ativistas dos direitos animais e acabou se envolvendo numa ação extrema de protesto, incendiando um laboratório de pesquisas nos Estados Unidos. Depois de três anos presa, ela volta ao Brasil.
À procura de um recomeço, muda-se para uma pequena cidade na região serrana do Rio, onde conhece Rai — o gentil proprietário da casa mobiliada que aluga — e sua família. Ao intercalar a jornada da ativista e as incertezas que se formam nos novos vínculos que Adelaide estabelece, Adriana Lisboa tece uma narrativa sutil e poderosa sobre a fragilidade e a violência que se escondem nas mais sensíveis relações e aponta para o modo muitas vezes arbitrário como certas agressões são condenadas e outras normalizadas — incluindo, aqui, a conduta humana em relação às outras espécies animais.
Constelações: ensaios do corpo, de Sinéad Gleeson
Como contar a história de uma vida em um corpo que passa pela doença, por intervenções médicas radicais, pela convalescença e pela maternidade? Como contar essa história quando você não é apenas uma mulher, mas uma mulher na Irlanda, um país marcado pelos dogmas do catolicismo e pelo controle do corpo feminino? Nestes ensaios impressionantes e ousados, Sinéad Gleeson cumpre exatamente essa tarefa. Além de ouvirmos uma voz que vem do sangue e dos ossos de seu corpo, a autora também volta seu olhar inquieto para o exterior, explorando literatura, arte e política; levando-nos a uma jornada poética, terna e rebelde que é, ao mesmo tempo, singularmente pessoal e universal em sua ressonância.
A autora nos diz: “Hoje penso em todo o metal espalhado pelo meu corpo como estrelas artificiais, brilhando sob a pele, uma constelação de metais antigos e novos. Depois de anos de cirurgias, tenho dezenas de cicatrizes, mas elas também formam uma paisagem familiar. Articulações podem ser substituídas, órgãos transplantados, sangue transfundido, mas a história de nossas vidas ainda é a história de um só corpo.”
Boas leituras e um feliz dia das mães!