Camila Sosa Villada, Joseph Brodsky e Lélia Gonzalez
Recomendações de uma segunda-feira ordinária
Todo mundo fica cansado. Mais um dia, mais uma semana, mais um livro, mais uma newsletter. E às vezes nenhum fio condutor consegue juntar todos os nossos pedaços espalhados pela cidade. Tem dias até que deixamos nosso corpo só entrar no movimento instintivo do cotidiano e aquelas associações internas da vida nos conduzem sem nem percebermos.
Em respeito aos dias de cansaço e de nenhum sentido aparente, o boletim de hoje vem sem tema algum. Uma lista de livros que, por cima, não parecem conversar entre si. Mas se lidos, conversados e compartilhados, irão compor a bagunça de dentro e farão partes de nós, nos guiando e desguiando até mesmo em tempos exaustivos.
Ode à errância, de Adonis (trad. de Michel Sleiman)
Ode à errância é o título que o próprio autor, o poeta Adonis, sugeriu para este volume da edição brasileira que reúne três das suas produções mais recentes: Concerto Alquds, de 2012; Zócalo, de 2014; e Osmanthus, de 2019.
Nesses três livros, que juntos formam uma ode contínua à errância, o poeta vaga por Alquds (Jerusalém), pela Cidade do México e outras localidades do país americano, e por Pequim e a geografia da Montanha Amarela, levantando camadas, revelando o Oculto, alisando o trivial. Três territórios que são o mundo todo nas errâncias de Adonis.
O bebedor de vinho de palma e seu finado fazedor de vinho na Cidade dos Mortos, de Amos Tutuola
Profundamente enraizado na tradição oral iorubá, O bebedor de vinho de palma leva o leitor por uma jornada plena de maravilhamento e mágica, na qual o personagem caminha de mata em mata, parando em vilarejos e às margens de rios, onde encontra todo tipo de obstáculos e criaturas.
O herói sem nome – como todos os personagens da história – se identifica como “Pai dos Deuses Que Podia Fazer de Tudo Nesse Mundo”. Ele leva uma vida de ócio e devaneio bebendo vinho de palma, uma bebida alcóolica fermentada a partir da seiva de várias espécies de palmeira, cercado de amigos igualmente bebedores. Até que seu fazedor de vinho, o único que exerce bem o ofício na região, morre numa queda. Isso obriga o herói a ir buscá-lo na Cidade dos Mortos.
Das névoas em que vive, ele cai num mundo “real”, mas não no sentido que damos à palavra em nosso mundo moderno e racional. “O ‘real’, em Tutuola, é tudo o que é vivo e se transforma, é tudo que encanta e pode ser encantado, é tudo que é invisível e insondado”, escreve no posfácio Fernanda Silva e Sousa, também responsável pela tradução da obra.
Os vulneráveis, de Sigrid Nunez
Sigrid Nunez retorna com sua escrita singular para contar uma história ambientada em Nova York nos primeiros dias do confinamento em razão da pandemia de covid. A narradora, escritora com idade suficiente para se qualificar como “vulnerável”, concorda em passar o início da quarentena no apartamento da amiga de uma amiga (presa pelo mesmo motivo em outro estado), para cuidar do papagaio Eureca, desamparado desde o sumiço repentino de outro hóspede, um universitário da Geração Z. O jovem retorna sem avisar, e os dois — ou os três, contando com a ave — tornam-se companheiros de casa, não sem antes atravessar certas tensões. A evolução desses relacionamentos, interpessoais e interespécies, torna-se a base sobre a qual a narrativa se desenrola.
Ganhadora do National Book Award em 2018 com o romance O amigo, também autora de O que você está enfrentando e Sempre Susan, Nunez volta seu olhar para o mais terrível e recente trauma coletivo e elabora, com o humor e a sensibilidade costumeiros, situações e personagens que refletem sobre a vulnerabilidade humana; a impermanência; a tênue beleza das conexões afetivas; a natureza da memória — ou seja, a vida em sua mais plena essência. Em meio a essa busca por significado despertada pela tragédia, Nunez nos traz uma faísca de esperança: é na literatura que podemos encontrar algum sentido quando o mundo em que habitamos vira de cabeça para baixo.
Juventude sem Deus, de Ödön Von Horváth
“Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos.” Ao ler essa frase na redação de um aluno, o professor reage: “Os negros também são seres humanos”. É esse o ponto de partida desta pequena joia da literatura em língua alemã, escrita em 1937, em plena vigência do Terceiro Reich. O livro acompanha a crise de consciência desse professor, em meio ao ambiente sufocante do regime racista e colonialista imposto pelo governo de Hitler. A atitude do professor em defesa dos negros soa revoltante para a casta que apoia o regime: burocratas acomodados, ou industriais e comerciantes. Sem falar nos próprios alunos, entusiasmados com o patriotismo que a política oficial lhes impinge.
Marca d’água, de Joseph Brodsky
Pouco mais de cem páginas, mas de altíssimo peso específico. O peso da água, talvez, do qual Marca d’água parece tecer o elogio. Um livro que também parece imitar a forma da água, ou melhor, sua ausência de forma, se é verdade que ela «desdenha a noção de forma». E qual cidade terrena se assemelha mais à água do que Veneza? As vielas, o seu emaranhado de becos e bequinhos, tornam-se uma oportunidade para Joseph Brodsky reproduzir sua topografia: dobras, rugas e ondulações da água se misturam assim à alma desta cidade que nunca aponta uma direção, mas sempre e apenas oferece «vias transversais». Água como imagem do tempo, Veneza como figura da desorientação, recipiente de espelhos e reflexos entre os quais, de modo fugaz aparece também o do poeta. Por dezessete invernos, Brodsky voltou a esta cidade, respondendo ao chamado de suas ruas feitas de água; por dezessete invernos aqui ele se perdeu e se enganou; seu libelo é uma sucessão de sensações e imagens poderosas que envolvem e cercam o leitor como um «tufo de gélidas algas marinhas», voltando à memória como um sonho recorrente, do qual ele mal se lembra dos contornos.
Nostalgia, de Mircea Cărtărescu
Romance inebriante em cinco partes independentes, de um dos principais escritores europeus da atualidade. Mircea Cărtărescu é cogitado como possível primeiro Nobel de Literatura em língua romena, e frequentemente associado a autores como Franz Kafka e Julio Cortázar. A memória aqui é a chave para a compreensão da existência e, mesmo quando fantasiosa, fundamental para a percepção da realidade. Memória caleidoscópica que alcança períodos de formação e se funde com a imaginação indomada, os desejos desconhecidos e as transformações inesperadas da infância e da adolescência. Memória reconstruída por uma linguagem sinuosa e sedutora, repleta de descrições sensoriais, imersa na atmosfera cálida e fantástica dos sonhos perturbadores.
Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez
Após mais de três décadas de sua produção original, o livro Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez, chega às livrarias de todo o país pela editora Boitempo. Trata-se do único livro que a pensadora, acadêmica e militante do movimento negro brasileiro, publicou em vida exclusivamente como autora. Escrita em 1987, a obra apresenta registros fotográficos de festas populares do Brasil de norte a sul com textos informativos que apresentam as marcas da herança africana na cultura brasileira, a integração entre o profano e o sagrado e a reinvenção das tradições religiosas na formação do imaginário cultural brasileiro.
A namorada de Sandro, de Camila Sosa Villada
Para desvendar os mistérios do amor travesti, Camila Sosa Villada se arma com sua voz doce e os amuletos que soube construir e acumular na intensidade da noite. Às vezes ama, outras odeia, deseja e é desejada, despejando tristeza e felicidade em cada um dos corpos sobre os quais derrama sua essência. Como uma grande feiticeira, gera versos carnívoros e plantas dóceis, palavras que adornam os terraços em que residem seus sapatos de salto. A nós, leitores, nos resta vê-la sangrar, queimar e rir do mundo. Talvez a memória dos amantes perdidos seja a que menos machuca entre todas as oferendas que ela nos traz em A namorada de Sandro. Há também a mãe de aluguel, a fadiga do pai em sua luta contra a pobreza, a amada do amante e os amigos que já se foram.
Boas leituras!
Alguém me explica por que é que o inexplicado, aqui, me faz sorrir?
Vou começar pelo Adonis