Acreditamos que a boa literatura se apresenta de todas as formas e estilos. Pra muita gente, o primeiro contato com a leitura vem através dos gibis, revistinhas, quadrinhos - são vários nomes para o mesmo formato tão querido. As HQs (histórias em quadrinhos) misturam as palavras com os desenhos, a leitura com as imagens, tecendo histórias através de duas linguagens opostas mas complementares.
Há quem ache que história em quadrinho é coisa de criança, mas a newsletter de hoje veio para provar que quadrinhos são para todas as idades, tamanhos e gostos.
O segredo da força sobre-humana, de Alison Bechdel
Após a publicação dos aclamados Fun Home e Você é minha mãe, Alison Bechdel explora, neste também autobiográfico O segredo da força sobre-humana, sua história de fascínio pelos exercícios físicos, desde a infância, nos anos 1960, até os dias atuais, quando a autora percebe as limitações de um corpo que já não tem o mesmo vigor e flexibilidade de antes. O relato passa pela corrida, pelos clubes de caratê feminista nos anos 1980 e por práticas tão diversas quanto ioga, ciclismo, escalada, esqui, HIIT e as outras tantas modas fitness que a autora explorou numa tentativa metódica de conter o estresse e a ansiedade e de manter obsessivamente a própria vida sob controle.
Além de Palomar, de Gilbert Hernandez
Dando sequência à série reunida em Sopa de Lágrimas e Diastrofismo Humano, Além de Palomar reúne em um só volume duas das mais elogiadas sagas publicadas por Gilbert Hernandez na célebre revista Love and Rockets: Rio Veneno e Love and Rockets X.
Rio Veneno revela o trágico passado da prefeita Luba, sua infância miserável, seu envolvimento com mafiosos de extrema-direita e a razão de sua fuga para Palomar. Uma narrativa épica que aborda desde a violência política até a perda de identidade e é considerada não apenas um dos melhores trabalhos do autor, mas também um de seus mais complexos.
Em Love and Rockets X, Gilbert Hernandez deixa o tempo mítico de Palomar e mergulha em uma outra dimensão, bem mais definida no tempo e espaço: a Los Angeles de 1989. É o momento no qual o governo Bush invade o Panamá e se prepara para a Guerra do Golfo, contra o Iraque. Enquanto que a tensão racial amplia-se para explodir em violentos tumultos nas ruas da cidade. Madonna e Guns n’ Roses dominam as paradas de sucesso, e a MTV ainda comanda a festa. Tendo tudo isso como pano de fundo, Love and Rockets X como que mapeia os sentimentos da cidade, retratando os imigrantes ilegais, os milionários de Beverly Hills, os candidatos a astros do rock, os jovens negros, as patricinhas, os neonazistas… Ao ponto do crítico norte-americano Robert Fiore, além de colocar a história como uma das melhores dos anos 1990, defini-la como “um equivalente em quadrinhos da novela social de Victor Hugo”.
Ópera Negra, de Clara Chotil
Filha de uma empregada doméstica, órfã aos oito anos de idade, trabalhou como professora e fez sucesso como locutora de rádio. Estudou canto lírico, mas foi barrada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro por ser negra. Então, foi para a França, onde fez uma carreira brilhante e se tornou cantora do Opera de Paris. Em Ópera Negra, a artista franco-brasileira Clara Chotil resgata a fascinante história de Maria d’Apparecida, uma estrela que o Brasil esqueceu.
Memórias de um freixo, de Kun-Woong Park
Adaptado de um livro do escritor coreano Choi Yong-tak, Memórias de um Freixo retrata um momento dramático e violento da história recente coreana conhecido como o "Massacre das Ligas Bodo". Durante o verão de 1950, logo no início da Guerra da Coreia, as autoridades sul-coreanas organizaram a eliminação de dezenas de milhares de civis, oponentes políticos declarados ou simples simpatizantes, por medo do contágio comunista.
Esse massacre, realizado pelo exército e pela polícia sul-coreanos, deixou entre 100.000 e 200.000 mortos, incluindo mulheres e crianças. Posteriormente, o evento foi deliberadamente obscurecido pela história oficial da Coreia do Sul. Apenas na década de 1990 que valas comuns foram encontradas e alguns perpetradores do crime foram chamados a testemunhar.
Nesta história cujo narrador é uma árvore que habita um dos vales onde ocorreram os massacres, o autor mobiliza o leitor por meios gráficos excepcionais através de um conjunto de imagens de beleza sombria e marcante. Kun-woong Park é um autor virtuoso e comprometido, e faz um trabalho de longo prazo que visa exorcizar os erros dos governos coreanos desde a independência em 1945.
Más Companhias, de Ancco
A história se passa no fim dos anos 90, em uma Coreia dividida entre a tradição e a modernidade. Submetida diariamente ao abuso físico e psicológico de seus pais e professores, a jovem Jinju encontra refúgio nas tardes com sua amiga Jeong-ae. Tardes regadas a álcool, cigarros e desabafos.
Cansadas das surras constantes e do tédio cotidiano, as duas decidem fugir de casa, mas logo descobrem que o mundo lá fora não é tão gentil quanto parece. Um dos maiores nomes do manhwá contemporâneo, Ancco mistura elementos autobiográficos e ficcionais com seu traço sombrio e expressivo, construindo um relato sensível sobre a experiência de crescer mulher na Coreia do Sul. Uma reflexão sobre a amizade entre mulheres e a ânsia por quebrar regras como táticas de sobrevivência, Más Companhias é um quadrinho arrebatador.
Spinning, de Tillie Walden
Em Spinning, a jovem quadrinista Tillie Walden reúne suas memórias em um relato lírico e sensível sobre o amadurecimento, as descobertas e desafios da adolescência.
Por dez anos, a rotina de Tillie foi sempre a mesma: acordar, pegar os patins, ir para o ringue de patinação no gelo antes mesmo de o sol raiar. Patinadora competitiva, ela viaja o estado participando de torneios e treina diariamente. O esporte se torna uma espécie de porto seguro para lidar com as inseguranças provocadas pela mudança de cidade, quando sua família deixa Nova Jersey para viver no Texas, e as crises da puberdade.
Walden retrata sua rotina exaustiva de treinos e competições em meio à angústia com o despertar da sexualidade, o bullying, a descoberta das artes e o fim do ensino médio.
A tragédia da princesa Rokunomiya, de Kuniko Tsurita
Numa época em que as artistas mulheres eram minoria até nos gibis dirigidos ao público feminino, surgiu Kuniko Tsurita quebrando regras, rompendo tabus e tornando-se a primeira mulher a publicar regularmente na legendária Garo, a revista que liderou os mangás de vanguarda no Japão. Tsurita não apenas foi aquela que melhor retratou a cena underground do Japão dos anos 1960, mas também uma pioneira que, por exemplo, ousou a retratar amores explicitamente lésbicos.
Misturando influências da literatura francesa (Sade, Jean Genet, Le Clésio, Céline, Camus…) com outras das artes plásticas (Dürer, Käthe Kollwitz, Aubrey Beardsley, Goya…) e o psicodelismo de artistas como Tadanori Yokoo e Aquirax Uno, os quadrinhos de Tsurita são de tirar o fôlego, impressionantes em sua ousadia e beleza.
A Tragédia da Princesa Rokunomiya é uma ampla coletânea que reúne desde as primeiras histórias publicadas na Garo até a última, Flight, que, entre outras coisas, fala de voar sobre a floresta amazônica. A edição conta inclusive com um texto de Naoyuki Takahashi, viúvo de Tsurita, a respeito do interesse que a artista tinha pelo Brasil.
Ficamos por aqui,
Boas leituras!
Amei as indicações!